MONSTROS
AQUI VIVEM OS MONSTROS
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
01/10/2021 |
Os mapas antigos e os bestiários ajudaram a reforçar o conceito de que monstros e criaturas estranhas habitavam nosso planeta.
O hemisfério norte do Globo Hunt-Lenox (c. 1504).
Os relatos sobre a existência de seres monstruosos espalhados pelo mundo foram, em parte, ampliados pelos mapas elaborados pelos primeiros cartógrafos. Carol Rose lembra a famosa frase “Aqui existem dragões”, do latim “hic sunt dracones”, que constava em alguns desses mapas, indicando regiões inexploradas do planeta. E também ilustrações de seres mitológicos e lendários que constavam em mapas antigos e que supostamente existiriam em determinadas regiões pouco exploradas.
Detalhe da extremidade leste do Globo Hunt-Lennox, com a inscrição "hic sunt dracones".
“Esses ‘dragões’ eram características comuns em lendas e folclore de tempos antigos em praticamente todas as culturas do mundo”, diz Carol Rose. “No entanto, a palavra refere-se não apenas às criaturas identificadas como ‘dragões’, mas também àqueles ‘monstros’ não nomeados que se acreditava que aguardavam por suas vítimas humanas”.
Aparentemente, a primeira vez que a expressão foi utilizada foi em 1504, no chamado Globo Hunt-Lenox. O Globo Da Vinci, também datado de 1504 e atribuído a Leonardo Da Vinci, igualmente traz a frase em latim que, segundo alguns pesquisadores, foi influenciada pelo relato de Alberto Magno (c. 1200-1280) em seu tratado De Rebus Metallicis et Mineralibus (1276), sobre alquimia, no qual ele falava sobre uma pedra chamada “draconite”, extraída da cabeça de um dragão, e trazida do Oriente “(...) onde existem muitos dragões grandes”.
Tabula Peutingeriana. Cópia do século 13, de original romano.
Outros mapas trazem uma variedade de criaturas monstruosas, como na Tabula Peutingeriana, um mapa rodoviário romano indicando as estradas para Roma. A Tabula é do século 13, mas provavelmente copiada de um original romano. Ali, é indicado o local onde nascem os cinocéfalos, seres com corpo humano e cabeça de cão. Esses seres já surgiam nas antigas culturas do Egito, Índia, Grécia e China.
No Egito, eles estavam relacionados aos deuses, e são bem conhecidas as representações dos seres divinos com cabeças de cães ou chacais, como Anúbis e Wepwawet. Na Grécia, o relato desses seres surge no livro Indica, do século 5 a.C., escrito pelo médico Ctesias (século 5 a.C.), e dizia que eles existiam na Índia. O historiador e explorador grego Megástenes (c. 350-290 a.C.) também refere-se à existência de criaturas com corpo humano e cabeça de cão vivendo nas montanhas da Índia. O historiador grego Heródoto afirma ter ouvido relatos de antigos líbios segundo os quais essas criaturas viviam na parte leste de seu território.
Mapa Mundi de Hereford.
Um dos mapas mais famosos da Idade Média é o chamado Mapa Mundi de Hereford (c. 1300), cujo nome se deve ao fato de estar na Catedral de Hereford, na Inglaterra. A autoria geralmente é atribuída a Richard of Haldingham and Lafford, mas acredita-se que mais de uma pessoa trabalhou para completar os detalhes.
O mapa foi elaborado como uma representação do mundo conhecido em duas dimensões, e está repleto de imagens referentes às fantasias medievais, apresentando o Jardim do Éden ao alto, de onde nascem quatro rios que dividem a Terra.
Os seres monstruosos foram desenhados em diversas partes do mapa, entre eles os blemeyes, que não teriam cabeça, mas a boca e os olhos situados na altura do peito. Como em tantos outros mapas e bestiários da Idade Média, esses seres já tinham origem mais antiga, surgindo nas descrições do romano Plínio, no ano 77. Acreditava-se que, na época do império romano, essas criaturas habitavam a Etiópia.
Ilustração de um monópodo, um ciclope, um blemeye e um cinocéfalo, para o livro The Voyage and Travels of Sir John Mandeville (c. 1357).
Também aparecem descrições dos cinocéfalos e dos cinântropos, que seriam o oposto dos cinocéfalos, ou seja, seres com o corpo de cães e cabeça humana. Os parvines teriam quatro olhos e, como tantos outros monstros, morariam na Etiópia. Os monópodos possuiriam apenas um pé gigantesco, com o qual se protegiam do Sol, e ainda conseguiam correr a velocidades fantásticas; mais uma vez, a descrição original é atribuída a Ctesias, em seu livro Indica.
Os santos Ahrakas e Augani, em arte do século 18.
Seres cinocéfalos também surgem nas lendas sobre a vida do santo Mercúrio de Cesareia (c. 225-250), mais especificamente nas descrições dos santos que o serviam fielmente, Ahrakas e Augani, cujos ícones eram representados com cabeças de cão. Até mesmo na Igreja Ortodoxa, algumas representações de São Cristóvão apresentavam-no com uma cabeça de cachorro e, segundo alguns estudiosos, poderia ser uma influência da representação do deus egípcio Anúbis.
Representação de São Cristóvão com cabeça de cão (século 17).
Referências a seres cinocéfalos surgem em vários relatos de origem religiosa, mas elas são mais numerosas nas histórias dos viajantes e exploradores antigos. É o caso do explorador e diplomata italiano Giovanni da Pian del Carpine (c. 1185-1252), um dos primeiros europeus a entrar na Mongólia. Em seus relatos, fala do exército de Ogedai Khan, filho e herdeiro do império mongol de Gengis Khan, que teria encontrado uma raça de seres com cabeça de cão vivendo ao norte do Lago Baical.
No livro As Viagens de Marco Polo, escrito por Rustichello da Pisa a partir das histórias contadas pelo famoso explorador italiano em suas andanças pelo mundo entre 1271 e 1295, surge referência à existência de bárbaros com cabeças de cão nas ilhas Andaman, no Oceano Índico. Outro livro bastante conhecido, The Voyage and Travels of Sir John Mandeville (c. 1357), também menciona a existência de cinocéfalos vivendo nas Ilhas Nicobar, igualmente no Oceano Índico. Ainda que contenha algumas informações consideradas legítimas, o livro geralmente é tido como uma obra de ficção, de autor desconhecido, e ainda faz referência a uma série de outros seres absurdos.
Representação do manticora no Bestiário Rochester (c. 1230-1240).
O livro Indica, já citado, traz a que é considerada a primeira referência ocidental ao manticora, criatura lendária originária da Pérsia, mas que também foi bastante citada pelos europeus. Teria uma cabeça humana em corpo de leão, com o rabo semelhante ao de um escorpião; e, apesar da cabeça humana, a boca apresenta três fileiras de dentes. Algumas descrições dizem que a cauda tem espinhos que podem ser arremessados contra os inimigos ou suas vítimas, uma vez que se dizia que o manticora devorava suas presas sem deixar sequer os ossos.
Em seu O Livro dos Seres Imaginários, o escritor argentino Jorge Luis Borges apresenta uma descrição de Plínio que, por sua vez, atribui a Ctesias, autor do Indica, a descrição do manticora como um animal vivendo entre os etíopes, que gosta de carne humana e tem a voz parecida com “(...) a consonância da flauta e da trombeta”.
Segundo Carol Rose, diz-se que o nome é uma distorção do persa mardkhora, que significa “assassino de homens”. Ela também refere-se à habitação do manticora como sendo a Índia ou a Etiópia, e diz que, durante o período medieval, o manticora foi frequentemente descrito em bestiários.
Um basilisco representado no Bestiário de Aberdeen (século 12).
Os bestiários tornaram-se muito comuns na Idade Média e, além das descrições de animais conhecidos, apresentavam citações e ilustrações de animais lendários. Um dos mais conhecidos, o Bestiário de Aberdeen, foi elaborado no século 12, e traz uma das muitas descrições do basilisco. Jorge Luis Borges lembra que as descrições do basilisco mudam ao longo dos tempos. Em sua História Natural (Naturalis Historia, 77), o romano Plínio, o Velho (23-79), apresenta a criatura como uma pequena serpente extremamente venenosa, e até seu olhar é fatal.
Carol Rose diz que o basilisco surge nas lendas e folclore da Europa e do Oriente Médio, com descrições variadas, desde tempos antigos até o século 17, quando sua “popularidade” diminui. Segundo Leo Ruickbie, em The Impossible Zoo, a primeira descrição do basilisco surge com o poeta grego Nicandro de Cólofon (século 2 a.C.), em sua obra Theriaca. O nome teria origem em uma espécie de coroa em sua cabeça, uma vez que, em grego, basilískos significa “pequeno rei”. Borges diz que o poeta romano Lucano (39-65) conta, em sua epopeia Farsália, que o basilisco nasceu do sangue da górgona Medusa; isso explicaria o conceito de que, assim como a Medusa podia transformar as pessoas em pedra apenas com seu olhar, o basilisco possa matar uma criatura da mesma forma. Carol Rose diz que sua capacidade de destruição era tanta que se afirmava que o basilisco era responsável por ter criado os desertos da Líbia e do Oriente Médio, onde vivia.
O basilisco sendo atacado por uma doninha (Marcus Gheeraerts, o Velho, 1567).
As mudanças nas descrições ocorreram a partir da Idade Média, em particular com as histórias contadas pelos viajantes, assim como surgiram formas de enfrentar o até então imbatível basilisco. Uma delas incluía usar um espelho para refletir seu olhar e fazer com que ele matasse a si mesmo, um estratagema claramente copiado da lenda sobre a Medusa. Também se fala que o basilisco não suportava o cheiro das doninhas, que podiam enfrentá-lo.
Segundo Rose, em um de seus Contos de Canterbury (Canterbury Tales, 1387-1400), Geoffrey Chaucer mencionou o basilisco usando o nome Basilicok, que posteriormente originou o nome Cocatrice (Cockatrice), o que, por sua vez, teria originado o folclore de que o basilisco teria nascido de um ovo de um galo jovem, chocado por nove anos por um sapo. Borges diz que os enciclopedistas cristãos repudiaram as fábulas mitológicas da Farsália e, ao buscar uma explicação mais “racional” para a existência do basilisco, imaginaram que um ovo disforme posto por um galo tinha sido incubado por um sapo ou uma serpente.
O basilisco, então, passou a ser representado como tendo a cabeça, o pescoço e as pernas de um galo, e a cauda de uma serpente; às vezes, com um rosto humano e asas de dragão. Esse novo basilisco sequer poderia ser morto com uma lança, pois seu veneno poderia infectar a lança e atingir o agressor; também podia apodrecer os frutos de uma árvore mesmo à distância e poluir as águas do rio em que bebesse, que ficariam venenosas por séculos.
A anfisbena representada no Bestiário de Aberdeen.
O Bestiário de Aberdeen também faz referência à anfisbena, outra criatura nascida do sangue da Górgona, parte da mitologia grega, mas a criatura já surgia em obras anteriores como a já citada História Natural, de Plínio, o Velho, e no poema épico Farsália, de romano Lucano.
É descrita basicamente como uma serpente com duas cabeças, a segunda estando na extremidade oposta. Na Idade Média, passou a ser apresentada quase como a figura de um dragão, com duas pernas e asas, mantendo a segunda cabeça.
Tanto Plínio quanto Lucano diziam que uma anfisbena capturada poderia ser utilizada pela medicina, uma vez que sua pele seca poderia curar o reumatismo; quando viva, a anfisbena poderia favorecer a gravidez. Porém, como uma autêntica cria da Górgona, era extremamente venenosa.
Outro ser que surge nos bestiários, mas que tem origem anterior à Idade Média, é o grifo, criatura que tem o corpo, a cauda e as pernas de um leão, e a cabeça e as asas de uma águia. As representações mais antigas dessa criatura datam de três mil a.C., surgindo nas artes do antigo Egito e da antiga Mesopotâmia. Também na Índia podem ser encontradas imagens de grifos até 600 a.C. Posteriormente, as imagens de grifos surgiram por toda a Europa, frequentemente sendo incorporadas aos brasões de armas das famílias.
Grifos de bronze, do primeiro milênio a.C., no Museu do Antigo Oriente Próximo, em Berlim (Foto: Wolfgang Sauber/ Wikimedia, 2012).
Segundo Carol Rose, “Diz-se que os grifos são criaturas maliciosas, vorazes e aterrorizantes que podem atacar qualquer coisa viva que entre em seus domínios, levando-as pelo ar em suas grandes garras, até seus ninhos nas montanhas”. Também se dizia que os grifos guardavam tesouros nas montanhas ou minas de ouro na Índia e nas ilhas do Mediterrâneo.
Jorge Luis Borges diz que as descrições mais antigas, como as de Heródoto e de Plínio, são imprecisas, e a descrição mais detalhada do grifo veio do “problemático” Sir John Mandeville que, falando sobre a Báctria – região da antiga Pérsia, atual Afeganistão, ao norte da Índia – dizia que “Há nessa terra muitos grifos, mais que em outros lugares, e alguns dizem que têm o corpo dianteiro da águia, e o traseiro de leão, e isso é verdade, porque assim são feitos; porém o grifo tem o corpo maior que oito leões e é mais robusto que cem águias”. Borges também lembra que, na Idade Média, “(...) a simbologia do grifo é contraditória. Um bestiário italiano diz que significa o demônio; em geral, é emblema de Cristo (...)”. Tanto nas Etimologias (600-625), de Isidoro de Sevilha (c. 560-636), quanto na Divina Comédia (Purgatório, 1320) de Dante Alighieri (c. 1265-1321), o grifo simboliza tanto a natureza mortal quanto a natureza divina de Cristo.
Representação do aspidochelone, ou fastitocalon, em um bestiário publicado por volta de 1270.
A obra Physiologus (século 2 ou 4), de autor desconhecido, é considerada a antecessora dos bestiários da Idade Média, e também apresenta uma série de criaturas, muitas delas derivadas das lendas e mitos da Grécia e Roma Antigas.
Uma das criaturas citadas é o fastitocalon, também conhecido pelos antigos gregos como aspidochelone, e no Oriente Médio como zaratan. Supostamente, tratava-se de um peixe de proporções gigantescas, com o dorso semelhante ao de uma tartaruga. Surgia parcialmente das águas marinhas de forma a parecer uma ilha, de tão grande, inclusive com arbustos e árvores crescendo em suas costas. Aqueles que desembarcavam no Fastitocalon achando que era uma ilha, acabavam acendendo fogueiras e fazendo com que o peixe mergulhasse no mar, levando marinheiros e navios junto com ele.
O heroi Ulisses, amarrado ao mastro de seu navio, ouvindo as sereias (Ulisses e as Sereias. John William Waterhouse, 1891).
As sereias certamente estão entre as mais conhecidas e populares criaturas vindas das antigas lendas, e também descritas em diversos bestiários, inclusive no Pshysiologus. Segundo Leo Ruickbie, é mencionada pela primeira vez na Odisseia (século 8 a.C.), de Homero, mas certamente baseada em uma tradição oral mais antiga. Carol Rose lembra que Homero não chegou a descrever as criaturas, mas disse que elas eram maliciosas, que moravam em rochas e cantavam para os navegantes que passavam próximos, para atraí-los em direção às rochas.
As primeiras descrições das sereias apresentavam-nas com a parte inferior do corpo semelhante às dos pássaros, e a parte superior e os braços de mulher. Dizia-se que suas canções eram inebriantes e quem as ouvisse poderia enlouquecer e seguir cegamente em sua direção. Na Odisseia, o herói Odisseu – ou Ulisses, como também é conhecido – conseguiu ouvir o canto das sereias e resistir; ele fechou os ouvidos de sua tripulação com cera e mandou que o amarrassem ao mastro e dali não o retirassem, por mais que ele pedisse.
Moeda de Demétrio III, rei da Síria, do Império Seleucida, entre 96 e 87 a.C., com o verso apresentando Atargatis com o corpo de peixe (PHG/ Wikipedia).
O idioma inglês faz uma diferença entre essas sereias – chamadas siren – e aquelas que têm a metade superior do corpo de mulher e a inferior de peixe – chamadas mermaid. Em algum período da história, a descrição das sereias no Ocidente passou a utilizar a versão da criatura com metade inferior de peixe. Segundo Carol Rose, a primeira descrição nesse sentido pode ter surgido no Liber Monstrorum (Livro dos Monstros), do século 7 ou 8. No entanto, segundo Jeremy Black e Anthony Green, em Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary (1992), a descrição de seres com rabo de peixe e a parte superior do corpo de seres humanos surgiu inicialmente na arte mesopotâmica, a partir do período da antiga Babilônia, cerca de 1800 a.C.; e, ainda que geralmente fossem corpos de homens, os corpos de mulheres também eram retratados. O historiador russo Michael Rostovtzeff (1870-1952) disse que as primeiras histórias sobre sereias surgiram na Assíria, cerca de 1.000 a.C., e referiam-se à deusa Atargatis, que se apaixonou por um mortal e involuntariamente o matou. Com vergonha, jogou-se em um lago e tomou a forma de uma sereia, com as primeiras representações mostrando-a com corpo de peixe e cabeça e braços de mulher.
Uma Sereia (John William Waterhouse (1900).
Carol Rose diz que, durante o período medieval na Europa, a sereia era considerada um agente do demônio e um símbolo de fraude. “Frequentemente”, diz Rose, “ela era retratada nos móveis das igrejas segurando um peixe, que simbolizava a captura da alma dos cristãos, atraídos ao pecado pela sedução”. E, como tantas outras criaturas lendárias e do folclore, passaram a fazer parte da composição dos brasões das famílias da Europa.
Um tritão, representado em Physica Curiosa (1662), de Gaspar Schott.
Existe também o aspecto masculino da sereia, o merman, que pode ser traduzido como tritão, que era um deus marinho dos gregos, representado como tendo a parte superior de homem e a inferior de peixe. Segundo Carol Rose, a reputação dos mermen é mais violenta do que a das sereias, às vezes sendo o responsável por tempestades violentas e por afundar navios. Também se diz que eram agressivos com as sereias e até mesmo devoravam suas crias.
Um Tritão Coroado (Arthur Rackham. Final do século 19, início do século 20).
Arthur Waugh, em The Folklore of the Merfolk (1960), diz que provavelmente o primeiro merman registrado tenha sido o deus sumério Enki, conhecido na Babilônia como Ea, e entre os gregos como Oannes. Terry Breverton diz que “Cerca de 7 mil anos atrás, os babilônios honravam um merman chamado Ea, mais tarde nomeado Oannes pelos gregos. Como deus do mar, ele tinha a parte superior do corpo de um homem e a parte inferior de um peixe. Ele falava às pessoas em seu próprio idioma e fornecia conhecimento importante sobre artes e ciências”.
Esses nomes mais antigos estabelecem uma relação com os seres conhecidos como apkallu que, na Suméria, eram tidos como semi-deuses, parte homens, parte peixes, e associados com a sabedoria e o conhecimento. Para alguns estudiosos, o nome grego Oannes não teria relação com Ea, mas com o apkallu Uannes.
Virgem e Unicórnio (Domenichino, c. 1602).
O unicórnio certamente está entre os animais fantásticos mais conhecidos do mundo, e a origem das lendas a seu respeito provavelmente também está no livro Indica, de Ctesias, no qual ele descrevia um animal existente na Índia, um burro tão grande ou ainda maior do que um cavalo, com uma cabeça vermelha, olhos azuis e o corpo branco, com um grande chifre no centro da cabeça, das cores vermelha, branca e preta. Aristóteles também incluiu o unicórnio, com a descrição de Ctesias, em seu Historia Animalium. Na descrição de Plínio, o unicórnio também é chamado de monóceros e teria corpo de cavalo, cabeça de cervo, pés de elefante e cauda de porco, com um único chifre preto.
Xilogravura do livro The history of four-footed beasts and serpents, de Edward Topsell (1658).
Carol Rose dividiu as histórias sobre unicórnios em suas versões ocidental e oriental. Segundo ela, na Europa medieval, quando os bestiários começaram a ser escritos e publicados, o unicórnio ganhou um simbolismo religioso. “Em um bestiário latino datando do século 12”, conta Rose, “é relatado o estratagema de capturar o unicórnio levando uma jovem virgem para a floresta e deixando-a lá até que o unicórnio chegasse. Diz-se que a besta ficava tão encantada com a pureza da donzela que deitava sua cabeça em seu regaço e era capturado pelos caçadores que aguardavam”. A cena era explicada como o simbolismo da traição que Cristo sofreu, Sua subsequente captura e crucificação. “Nessa época” diz Carol Rose, “o unicórnio parecia ter adquirido uma piedade graciosa que faltava nas descrições anteriores”.
Ilustração da caça a um unicórnio, no Bestiário de Rochester (final dos anos 1200).
Leo Ruickbie diz que as antigas descrições ganharam nova vida quando os europeus, na Idade Média, começaram a explorar regiões mais distantes do mundo. Foi assim que surgiu, por exemplo, a descrição de Marco Polo (1254-1324) para os unicórnios de Sumatra, dizendo que existem elefantes selvagens no país, assim como unicórnios que são quase tão grandes quanto eles, com cabelo como o dos búfalos e patas de elefante, além do chifre no centro da cabeça. Além disso, Marco Polo acrescentava que a língua do unicórnio possuía ferrões. Para Ruickbie, Marco Polo estava descrevendo os rinocerontes, e ele ainda cita o livro Peregrinatio in Terram Sanctum (1486), de Bernard von Breydenbach, narrando sua peregrinação da cidade alemã de Mainz até a Terra Santa, no qual ele diz ter visto um unicórnio no Sinai.
Ao referir-se aos unicórnios citados nas histórias do Oriente, Carol Rose destaca que eles são bem diferentes dos ocidentais, existindo vários tipos. O principal, ela diz, é o Ki Lin, ou Ch’i Lin, sendo descrito nos antigos textos chineses como sendo o masculino Ki e o feminino Lin, sendo visto como uma unidade. Teriam o corpo de um cervo com cascos de cavalo, com uma “cabeça bonita” e um único chifre. O corpo pode ser multicolorido em azul, preto, vermelho, branco e amarelo, e, em um texto, diz-se que os unicórnios têm cerca de 3 metros e meio de altura.
O Ki Lin chinês, em cerâmica (386-534).
Na China, o unicórnio também é considerado um dos quatro animais celestiais, juntamente com o dragão, a tartaruga e o pássaro chamado Feng Hwang, e sua aparição é considerada auspiciosa. Também existem outros tipos de unicórnio, como o King, uma espécie de cervo com um único chifre; o Kioh Twan, que tem o corpo verde e o chifre no focinho.
Da Mongólia vem a descrição do Poh, semelhante a um lindo cavalo branco com uma imensa cauda preta e, nas patas, garras como as de um tigre e presas grandes na boca, com o típico chifre no centro da testa. É um unicórnio agressivo.
Do Japão, surge a descrição do Kirin, segundo Carol Rose baseado no Ki Lin chinês, porém com o corpo coberto de escamas.
Ruickbie cita o unicórnio africano descrito pelo viajante inglês Sir James Lancaster em 1592, que disse ter ouvido que ele se chamava Abath; outros viajantes citam-no com os nomes de A’nasa, Arase, Abada e ainda Ndzoodzoo, entre outros. Já Carol Rose diz que Abath é o nome pelo qual viajantes europeus do século 16 conheciam uma besta que vivia nas florestas da Península da Malásia, e que era a forma feminina do unicórnio.
Na Europa, o unicórnio também foi utilizado como simbologia dos alquimistas e herméticos, representando o espírito e, às vezes, Jesus Cristo, e o mercúrio.