MONSTROS
NOS RIOS E LAGOS
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
01/10/2021 |
Os rios e lagos também deram origem a milhares de relatos sobre a existência de criaturas monstruosas.
A reconstrução do monstro do Lago Ness como um plesiossauro, no Museum of Nessie, na Escócia (Foto: StaraBlazkova/ Wikipedia, 2006).
Não foram apenas os mares do planeta que estiveram povoados por criaturas monstruosas ou estranhas. Os rios e lagos também têm uma extensa variedade de criaturas, algumas mais assustadoras do que outras, e igualmente espalhadas pelas mais diferentes culturas.
Talvez a mais famosa e a mais persistente até os dias de hoje seja o chamado “monstro do Lago Ness”, ou Nessie, como passou a ser chamado, e que rendeu até mesmo especulações e investigações mais recentes com caráter científico.
O lago fica na Escócia e o suposto monstro que habita o local começou a ficar internacionalmente conhecido nos anos 1930, em particular após uma fotografia publicada em 1934 no jornal Daily Mail, que mostrava um longo pescoço e a cabeça da criatura. Posteriormente, a fotografia foi denunciada como uma fraude, mas as histórias sobre o monstro proliferaram.
Além da falsa fotografia, não existe qualquer imagem da criatura, mas dezenas ou centenas de relatos de pessoas que dizem terem visto um ser semelhante a uma imensa serpente com cerca de 30 metros deslocando-se no lago. No entanto, os relatos já existiam bem antes dos anos 1930. O primeiro relato surge, segundo os historiadores, na biografia Life of St. Columba (A Vida de São Columba), escrita pelo abade Adomnán (c. 624-704), da ilha de Iona, na costa oeste da Escócia. Segundo o relato, o evento ocorreu um século antes, quando São Columba estava na terra dos pictos e viu habitantes locais enterrando um homem próximo do Rio Ness, que liga o Lago Ness ao oceano, e disseram que ele tinha sido atacado por um monstro. Na história, Columba mandou que um de seus seguidores nadasse no rio, e o monstro aproximou-se dele; o santo então mostrou o sinal da cruz e mandou que a criatura se afastasse, o que ocorreu. Alguns entendem que esse é o primeiro registro da existência do monstro, mas muitos historiadores entendem que se trata de um motivo comum nas biografias de santos, justificando a existência de um milagre ou do poder da religião.
O desenho feito por Arthur Grant, representando a criatura que ele alegou ter visto em 1934.
Algumas histórias surgiram posteriormente, mas foi em 1933 que surgiram na imprensa britânica diversos relatos independentes de avistamentos de uma criatura no lago. E, em 1934, um motociclista chamado Arthur Grant disse quase ter colidido com uma criatura nas proximidades da vila de Abriachan, próxima do Lago Ness. O monstro teria atravessado a estrada em direção ao lago, e Grant o descreveu como uma mistura de uma foca com plesiossauro. Os especialistas que leram o relato e viram o desenho feito por Grant – que era estudante de veterinária – disseram que ele pode ter visto uma lontra ou uma foca, e pelas condições de iluminação (era madrugada), pode ter se confundido quanto ao tamanho real da criatura.
A partir de 1934, e até os anos 2000, surgiram vários relatos, fotos, filmes e até leituras de sonar que supostamente comprovavam a existência do monstro, mas foram todos descartados como erros de interpretação ou fraudes. Também a partir de 1934, vários estudos foram realizados no lago sem que tenham coletado qualquer evidência da existência de um monstro no local.
Um kelpie na forma humana (O Kelpie. Thomas Millie Dow, 1895).
Leo Ruickbie disse que os rumores acerca da existência de um monstro no Lago Ness podem ter sido alimentados por histórias mais antigas a respeito da existência de um kelpie na região. É uma crença escocesa bastante antiga e, segundo Carol Rose, trata-se de um monstro da água apavorante, malévolo e semissobrenatural, que pode assumir a forma de um homem velho de aparência rude e cabeludo, ou mesmo de um jovem elegante; no entanto, geralmente toma a forma de um cavalo preto ou cinza, ainda que existam alguns poucos relatos de um kelpie assumindo a forma de uma mulher.
Segundo Rose, eles podem ser vistos nas margens de lagos e na parte rasa de rios, e quando assume a forma humana pode aterrorizar as pessoas e levá-las à morte, ou aparecer para mulheres jovens, seduzi-las, abduzi-las e devorá-las embaixo da água. Na forma de um cavalo, pode atrair crianças e jovens para cavalgá-lo às margens de um lago e, então, galopar para dentro da água, afogando devorando as vítimas.
O Nixie, na versão norueguesa (Theodor Kittelsen, 1904).
Os monstros de rios e lagos são abundantes em todo o mundo, às vezes vistos como espíritos malévolos. É o caso do Nixie (ou Nix e Nixe), seres sobrenaturais do folclore da Escandinávia, Alemanha e Suíça, em algumas descrições também surgindo como criaturas capazes de alterar sua aparência. Segundo Carol Rose, apesar desses seres ainda conservaram o elemento monstruoso em suas descrições, eles foram se tornando mais e mais orientados para a forma de espírito, à medida que o folclore se desenvolvia.
A versão feminina assemelha-se bastante à aparência das sereias, como uma mulher linda da cintura para cima, e com a parte inferior de peixe, com a diferença de habitar em água doce. E é um ser malicioso e predador, usando a aparência para atrair humanos para seus domínios. Dependendo do local, sua aparência muda, podendo assumir também a forma de um cavalo, como no folclore do kelpie.
Ilustração de um bunyip (J. Macfarlane, 1890).
A mitologia dos aborígenes da Austrália também tem sua criatura aterrorizante das águas, o bunyip, que habita pântanos, braços de rios e riachos, com características e nomes que variam de acordo com a região. Normalmente, é descrito como sendo uma criatura horrenda, com corpo escuro e peludo, com braços longos e garras imensas nas mãos, e ele devora qualquer criatura que entre em seus domínios, inclusive humanos.
Alguns estudiosos imaginaram possibilidades para o surgimento da lenda, como a proposta do naturalista George Bennett (1804-1893), levantada por Robert Holden no livro Bunyips: Australia Folklore of Fear (2001); ele propôs que a criatura pode ser uma memória cultural de marsupiais já extintos na região. Da mesma forma, a paleontóloga Patricia Vickers-Rich, no livro Vertebrate Palaeontology of Australasia (1991), sugeriu que a lenda, como tantas outras, pode ter surgido da descoberta de ossos dos animais pré-históricos. Não chega a ser uma teoria nova, uma vez que foi aplicada a dezenas de outros monstros citados em lendas e folclore em diversos pontos do planeta.
Nos Estados Unidos e Canadá também existem inúmeros relatos de monstros dos rios nas lendas de praticamente todas as antigas tribos nativas, em particular as histórias referentes às serpentes com chifres, ainda que nem sempre estejam relacionadas com criaturas das águas.
Segundo Carol Rose, essas criaturas geralmente são apresentadas como tendo um corpo imenso, uma grande cabeça com mandíbulas espantosas e dois chifres no alto da cabeça. Também têm uma relação ambivalente com os humanos, tanto podendo ser benévolas quanto malévolas.
Para o povo Creek (Muscogee) – que habitava a região dos atuais estados do Tennessee, Alabama, Georgia e Florida – a serpente com chifres era uma serpente que vivia debaixo da água, coberta com escamas brilhantes e um cristal no centro da cabeça, e se dizia que ela tinha poderes divinatórios. Entre os sioux, falava-se de criaturas ancestrais, unhcegila, monstros reptilianos da água. Aqui, como ocorre com outras criaturas, cientistas também atribuem as lendas sobre o monstro a descobertas de fósseis de animais pré-históricos.
Rose também fala sobre a classificação ainda mais especifica das serpentes com chifres da água, presente nas tradições de Pueblo, Hopi e Zuni, nativos americanos, igualmente descritas como sendo imensas e com grandes chifres no alto da cabeça. Entre os iroqueses, que viviam no Canadá e nordeste dos Estados Unidos, a Grande Serpente com Chifres era uma protetora dos lagos, geralmente invocada quando era preciso atravessar águas turbulentas.
O Hoga, na ilustração do livro Of Monsters and Marvels, de Ambroise Paré.
No folclore mexicano, fala-se sobre o monstro chamado Hoga, um peixe gigantesco com cabeça e orelhas como as de um porco, e uma boca com presas grandes. Ele teria a capacidade de mudar de cor, e habitava o lago Texcoco, onde ficava a cidade asteca de Tenochtitlán, atual Cidade do México. Os humanos tinham medo da criatura, uma vez que se dizia que ela pegava grandes peixes e até mesmo animais terrestres que se aventuravam próximo da água.
As pesquisas sobre monstros que habitam lagos e rios pelo mundo revelam centenas de diferentes nomes e localidades, em todos os continentes, cada qual com características e histórias próprias, às vezes muito semelhantes. Algumas dessas criaturas surgem de tradições muito antigas e permanecem; outras são mais recentes, às vezes versões locais e modificadas das lendas ancestrais. E, apesar de hoje em dia termos possibilidade de análises científicas muito mais apuradas e confiáveis, as histórias parecem ter vida própria, e continuam a suscitar relatos de avistamentos.