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DROGAS E ESPIRITUALIDADE
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
19/12/2024 |
O uso de substâncias especiais para o desenvolvimento da espiritualidade é uma das atividades mais antigas do planeta e está na origem do xamanismo. Hoje em dia, são muitas as formas utilizadas para se atingir a dimensão espiritual, e a ciência já começa a estudar o assunto mais de perto.
Imagem: Lavillia/ Pixabay.
A relação entre o uso de drogas dos mais variados tipos e a espiritualidade, ou o despertar da espiritualidade, não é algo novo. Nem mesmo a discussão sobre esse assunto é algo recente. Cientistas, poetas, místicos, religiosos, esotéricos, escritores e pesquisadores ligados às mais diversas áreas já transitaram por esse caminho, ou utilizando as substâncias, ou comentando sobre seu uso em circunstâncias diversas, com variados resultados e pontos de vista.
Na verdade, é um campo mais amplo do que se pode imaginar, principalmente se começarmos a aceitar a postura de alguns etnobotânicos modernos, como Terence McKenna (1946-2000), segundo o qual a utilização de substâncias contendo psilocibina por algumas das culturas mais antigas do planeta foi responsável não apenas pelo desenvolvimento de uma visão espiritual do mundo, mas pelo próprio desenvolvimento da sociedade e do modo de pensar moderno.
No entanto, na área da espiritualidade o bicho pega ainda mais, recuando aos primórdios da civilização, com o xamanismo e com praticamente todo o desenvolvimento religioso depois disso. Pode-se dizer que o ser humano vem utilizando algum tipo de substância – para o bem ou para o mal – desde que morava nas cavernas, e quase sempre com o objetivo de atingir estados alterados de consciência que lhe permitissem entrar em contato com outras realidades que ele era capaz de sentir, cuja existência era capaz de intuir, mas que não conseguia atingir, ver ou ter uma compreensão mais aprofundada. Isso absolutamente não quer dizer que o desenvolvimento da espiritualidade esteja necessariamente ligado à utilização de certas substâncias. A capacidade de pensar, de filosofar, de imaginar e de pesquisar faz parte do ser humano desde sempre, pelo que se sabe. O sentimento de comunhão com uma realidade exterior e invisível, impalpável, mas pressentida, existe independentemente do uso dessas substâncias.
Salvia divinorum (Foto: Tim McCormack/ Wikimedia).
O gnóstico John Lash (ver entrevista em Em Busca da Gnose), se referiu a grupos que praticam a gnose e o xamanismo sem a utilização de quaisquer substâncias. No entanto, as pesquisas do etnobotânico e antropólogo independente R. Gordon Wasson (1898-1986) já indicavam que os chamados “antigos mistérios” envolviam o uso ritual de plantas psicoativas, como era o caso dokykeon dos Mistérios Eleusinos. O químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), o “pai” do LSD, foi outro que pesquisou bastante as chamadas plantas sagradas, chegando a viajar (literalmente) para o México à procura da salvia divinorum, uma conhecida planta psicoativa, na qual encontrou compostos químicos similares aos do LSD. Robert Graves (1895-1985), no prefácio de seu livro Os Mitos Gregos (The Greek Myths, 1955. Editora Nova Fronteira, 2021), argumenta que a ambrosia citada e utilizada por várias tribos pré-helênicas provavelmente era um tipo de cogumelo.
Afresco do século 12, mostrando Adão e Eva no Jardim do Éden, ao lado de um cogumelo amanita muscaria gigante (Foto: Aranthama/ Wikimedia).
Segundo John Lash, Graves foi uma das primeiras pessoas a demonstrar que o xamanismo europeu era enteogênico, usando plantas sagradas de ensinamento. A palavra em inglês, entheogenic, foi criada em 1979 por um grupo de etnobotânicos. Segundo eles, são designadas como enteogênicas apenas as drogas indutoras de visões e que tenham sido utilizadas em rituais xamânicos ou religiosos. No entanto, num sentido mais livre, o termo também é aplicado a outras drogas, naturais e artificiais, que induzem alterações de consciência similares àquelas documentadas na ingestão ritual dos enteogênicos tradicionais. Algumas pessoas sugeriram que uma tradução livre da palavra poderia significar “aquilo que induz uma pessoa a estar em Deus”. Mas a palavra deriva de duas antigas palavras gregas: entheos (que pode significar “repleto de deus, inspirado, possuído”); e genesthai (que pode significar “para vir a existir”).
John Lash também lembra que as chamadas plantas sagradas psicoativas não são drogas, e cita Terence McKenna, segundo o qual “a mensagem psicodélica é uma mensagem antidrogas”. Lash prossegue afirmando que “essas plantas são ilegais porque o uso delas liberta as pessoas dos condicionamentos sociais e faz com que se virem contra o sistema, a Igreja, o governo, etc. As plantas sagradas nos mostram a falsidade do mundo humano”. Mais do que isso, segundo ele, é preciso saber separar as coisas. “Atingir o êxtase gnóstico com plantas sagradas é uma disciplina de elite que nada tem a ver com o uso recreativo de drogas como MDMA (metilenodioxidometanfetamina, mais conhecida como ecstasy), ou comer cogumelos mágicos em situações sociais como raves e concertos de rock”.
Imagem: MythologyArt/ Pixabay.
No livro Sobrenatural (Supernatural, 2005. Editora Nova Era, 2011), o escritor Graham Hancock também fala sobre as pinturas em cavernas, às quais se referiu em uma entrevista a Greg Taylor, editor-chefe da revista eletrônica Sub Rosa Magazine (www.subrosa.dailygrail.com. Leia parte dessa entrevista aqui). Ele cita David Lewis-Williams, professor de arqueologia que fundou o Rock Art Institute, na Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e que desenvolveu o “modelo neuropsicológico”, uma teoria que explica o fato de que os mesmos motivos de pinturas se repetem nas artes em caverna do Paleolítico superior da Europa e da África do Sul, culturas geográfica e cronologicamente separadas. Segundo David Lewis-Williams, a explicação é que todas as pinturas estão descrevendo os mesmos eventos mentais extraordinários, experimentados em estados alterados de consciência. Hancock defende ainda o conceito de que o início do comportamento considerado humano e moderno, na arte e na religião, está ligado àqueles estados, e isso é válido não apenas no que diz respeito ao uso de alucinógenos como os “cogumelos mágicos” ou a ayahuasca da América do Sul, mas também por meio de outros métodos, como algumas danças rituais. Segundo ele, graças às modernas experiências científicas com voluntários usando alucinógenos, sabe-se que a sequência típica de visões começa com padrões e formas geométricas, como pontos, traços, linhas em ziguezague, e gradualmente se transforma em um sentido mais profundo de realidade alterada na qual o indivíduo frequentemente pode ver seres humanos parcialmente transformados em animais.
Imagem: Steven Underhill/ Pixabay.
Alguns pesquisadores acham que um dos problemas com a utilização dessas substâncias, sagradas ou não, é que as experiências narradas em livros e outros documentos possam afetar as experiências subsequentes de outras pessoas. Por exemplo, segundo explica Greg Taylor, muita gente diz que as pessoas veem os chamados “duendes de DMT” devido às descrições de Terence McKenna. Para explicar melhor, é preciso dizer que Terence McKenna fez experiências com a substância conhecida como dimetiltriptamina, ou DMT, que tem uma estrutura similar à do neurotransmissor serotonina, criada em pequenas quantidades no organismo humano e quimicamente sintetizada em 1931, além de existir naturalmente em várias plantas usadas em práticas xamânicas da América do Sul, como a ayahuasca. Graham Hancock responde a essa questão perguntando se não seria o caso das pessoas verem os “duendes” justamente porque estão sob a influência das mesmas substâncias químicas, indo aos mesmos lugares nos quais Terence McKenna esteve. É uma questão difícil de ser respondida. “Eu penso”, diz Hancock, “que a fonte dessas experiências está no mundo visionário – elas chegam até nossa cultura, mas elas começam no mundo visionário”.
Imagem: ThankYouFantasyPictures/ Pixabay.
Outro exemplo referente a essa situação são as experiências realizadas pelo dr. Rick Strassman, na Universidade do Novo México, nos anos 1990. As pessoas participantes do experimento receberam doses de DMT e relataram experiências de abdução alienígena. Seria possível dizer que essas pessoas apenas relataram uma experiência a partir do que elas já conheciam em suas mentes: as histórias de abduções alienígenas tão comuns em nossa sociedade. Só que a mesma experiência, com a mesma droga, já havia sido realizada nos anos 1950, antes da imensa publicidade sobre abduções alienígenas, e as pessoas também relataram o mesmo tipo de encontros e abduções. Para Hancock, portanto, experiências desse tipo são muito espalhadas e universais, e distribuídas ao longo do tempo, para serem explicadas apenas como sendo influência do ambiente cultural.
Alguns cientistas contestam firmemente toda e qualquer ideia de contato com seres espirituais, extraterrestres ou quaisquer outros semelhantes. O professor de psicologia na Laurentian University, dr. Michael Persinger (1945-2018), foi um dos mais citados contestadores dessa situação, evocando o que se chama de “sensação de presença”. Realizando experiências com voluntários e colocando eletrodos para estimular seus lobos temporais, ele obteve resultados considerados surpreendentes. As pessoas tinham a impressão de ter alguém ou algum ser ao seu lado, processo geralmente associado ao da abdução alienígena, mas que também se estende a quase todo tipo de visões. Posteriormente, suas experiências foram reproduzidas por cientistas de outras partes do planeta, e os resultados não foram tão satisfatórios, a ponto de suas conclusões terem sido minimizadas. Hancock também falou sobre ele em seu livro, entendendo que as conclusões a que chegou Persinger – ou seja, de que as visões eram produtos do estímulo eletromagnético de determinadas regiões do cérebro, e apenas isso – não invalidam quaisquer experiências com plantas sagradas, psicoativas, drogas alucinógenas ou como queira se chamar. Para ele, o dr. Persinger apenas descobriu mais uma forma de se entrar em contato com essa outra dimensão, de entrar em estado alterado de consciência, usando campos eletromagnéticos em vez de químicos alucinógenos ou outras plantas.
Seja como for, muitos cientistas não aceitam a realidade do contato com outras dimensões, com ou sem uso de plantas ou quaisquer drogas, entendendo que as visões que possam surgir da experiência são simplesmente fruto das memórias pessoais, da cultura de cada um e do próprio ambiente cultural e social em que estão inseridas. Dessa forma, seria impossível distinguir o que é uma alucinação causada pela substância em questão de uma provável ou suposta vivência espiritual.
Imagem: fszalai/ Pixabay.
É interessante também o conceito, defendido por algumas vertentes, de que diferentes plantas possuem diferentes características, as quais não são apenas físicas e químicas, mas cada uma pode provocar um tipo específico de experiência, ainda que muitas vezes as narrativas sejam muito próximas. Enquanto o cacto peiote é mais utilizado no México e sul dos Estados Unidos, na América do Sul a preferência é pela ayahuasca – que, em alguns lugares do continente, é chamado de yagé, e no Brasil, Santo Daime. Apesar de ser conhecido, segundo se diz, há milhares de anos pelos indígenas da América do Norte, o peiote se tornou popular com a publicação dos livros de Carlos Castañeda (1925-1998) e foi uma das substâncias mais procuradas nos anos 1960, ainda que nem sempre com o propósito de crescimento ou conhecimento espiritual.
Terence McKenna também disse que, sob o efeito de cogumelos, ele estabelecia conexões telepáticas. Hancock confirma esses relatos, assim como os de visão à distância, outra capacidade psíquica muito estudada por parapsicólogos, e também levanta o importante aspecto de que certas pessoas conseguem obter informações valiosas quando sob a ação de certas substâncias. Uma das histórias que circulam é que Francis Crick (1916-2004), um dos descobridores da estrutura do DNA, conseguiu ver essa estrutura quando estava sob a influência do LSD. Outro exemplo são os xamãs da Amazônia, que aprendem quais plantas devem ser misturadas para obter uma cura específica.
Graham Hancock diz que essas informações parecem estar disponíveis a nós no estado alucinatório, e que esse é um aspecto da questão que deveria ser levado mais a sério. No que ele pode estar certo, ainda que a resistência a qualquer estudo envolvendo essas substâncias seja imensa.
Matéria publicada originalmente na revista Sexto Sentido 81 (2007).