Matérias
OS MITOS DA CRIAÇÃO
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
25/03/2025 |
As mais variadas culturas e religiões desenvolveram suas mitologias a respeito da criação do mundo e dos seres.
Imagem: Szymon Jasiński/ Pixabay.
As mais variadas culturas e religiões desenvolveram suas mitologias a respeito da criação do mundo e dos seres, e elas vêm sendo registradas desde as civilizações dos sumérios, egípcios e hindus, três ou quatro mil anos antes de Cristo.
Estudiosos do assunto, historiadores e mitólogos, entendem que, assim como ocorre com os relatos acerca do dilúvio, que surgem nas mais distintas culturas do planeta, existem muitas semelhanças entre alguns mitos da criação, em particular com o conceito de que, no princípio, não havia coisa alguma, ou era o caos.
A seguir, apresentamos aspectos de alguns desses mitos, com ou sem semelhanças. Certamente é apenas uma amostra, uma vez que as histórias são bem complexas e já renderam estudos publicados em centenas de livros.
Suméria e Babilônia
Símbolos de vários deuses, incluindo Anu (na segunda linha, à direita).
O mar primordial (abzu ou apsu) existia antes de todas as coisas, e dentro dele foram criados o céu (an) e a terra (ki), vista como um disco plano; um “vazio” separava os dois. Dentro desse vazio, havia o lil, uma espécie de atmosfera, e a parte mais brilhante dele formou as estrelas, os planetas, o Sol e a Lua. Os principais deuses sumérios estavam associados a uma dessas regiões. An, deus do Céu, e Ki, deusa da Terra, provavelmente foram os pais de muitos outros deuses.
Segundo a Epopeia de Gilgamés, todas as coisas foram criadas nos primeiros dias, quando o Céu e a Terra foram separados.
Os mitos da criação da Babilônia são baseados nos sumérios, que os antecederam na região. A principal obra é o Enuma Elish, registrado em sete tábuas com origem atribuída ao século 12 a.C., encontradas na biblioteca de Assurbanipal, em Nínive, e primeiramente publicado em 1876, com o título O Gênesis Caldeu. O título certamente não foi escolhido por acaso; após a descoberta e tradução do Enuma Elish, inúmeros estudiosos levantaram as incríveis semelhanças entre as narrativas da criação de babilônios e sumérios com aquelas que compõem o Gênesis judaico-cristão, entendendo que a origem de todas as narrativas pode ter sido a Suméria.
Egito
Atum, ao centro entre Ra-Horakhty e Hathor, do Papiro Harris (c. 1184–1153 a.C).
No início, havia apenas água, um caos de água borbulhante chamado Nu, ou Nun, imagem que, segundo os especialistas, remete à presença fundamental do rio Nilo na cultura egípcia.
Do caos das águas surgiu Atum, o deus-sol da cidade de Heliópolis. Acredita-se que ele criou a si mesmo, a partir de seus pensamentos e vontade. No local onde surgiu, ele criou uma colina; outras interpretações dizem que Atum era a colina, exatamente o local onde se diz que o templo de Heliópolis foi construído.
Seu ato seguinte foi criar mais deuses e, como estava sozinho no mundo, uniu-se à sua sombra, sendo apresentado como um ser bissexual e, assim, a única força criativa no universo. Alguns textos apresentam-no criando seus filhos na colina primordial; outros, nas águas de Nu. Ele cuspiu seu filho, Shu, e vomitou sua filha, Tefnut; os dois estabeleceram a ordem social.
Depois de algum tempo, seus filhos se separaram dele e se perderam no caos de Nu. Atum, que tinha apenas um olho, removível – chamado Udjat – tirou-o e enviou à procura dos filhos. Eles retornaram, trazendo seu olho, e as lágrimas de alegria de Atum caíram ao chão e deram origem aos homens.
Outro mito da criação egípcio apresenta Khepri, o deus escaravelho, como o criador. Ele é uma forma do deus Ra. Segundo essa versão, Khepri diz que “o céu e a terra não existiam. E as coisas da terra ainda não existiam. Eu as criei a partir de Nu, de seu estado estagnado. Eu fiz coisas a partir daquilo que eu já tinha feito, e elas vieram da minha boca”. Em outras palavras, no início não havia nada, e ele criou Nu, o caos de água, a partir do qual criou o mundo.
Índia
Desenho descrevendo Brama no pássaro Hansa (c. 1700).
A maioria dos estudiosos entende que não existe um único mito da criação hindu, mas vários, em tal quantidade que, às vezes, um mesmo texto traz mais de um mito. Geralmente, entende-se que os mais antigos se encontram no Rig Veda, que se diz ter sido escrito por volta de 1000 a.C., mas que é tido como uma compilação de conhecimentos muito anteriores.
Num dos hinos do livro, é dito que a criação é o resultado do sacrifício de Purusha, o ser primevo, que é tudo o que existe. Purusha tinha mil cabeças, mil olhos e mil pés; ele é sacrificado, e daí resultam as bestas que habitam a terra. O mesmo sacrifício produziu os deuses Indra (o rei dos deuses), Agni (fogo), Vayu (vento), além do sol e da lua. A atmosfera nasceu do umbigo de Purusha; de sua cabeça, o firmamento; de seus pés, surgiu a terra, e do ouvido, o céu.
Outros textos citam Manu, o primeiro homem, como tendo originado a raça humana por meio do incesto, ele mesmo tendo sido criado dessa forma pelo Criador.
Em épocas posteriores, nos Puranas, o criador do universo é o deus Brahma, que veio das águas primordiais, e o primeiro homem, Manu – um hermafrodita – nasceu diretamente de Brahma, e criou dois filhos e três filhas de sua metade feminina.
As histórias, no entanto, não se referem à criação do universo, propriamente dito, uma vez que a matéria do universo é reciclada periodicamente, eternamente, através dos períodos, ou yugas, num ciclo de regeneração e destruição permanente.
Grécia
Imagem de Zeus: Kellie/ Pixabay.
No início, havia uma escuridão vazia, o Caos. A única coisa existente no vácuo era Nyx, um pássaro com asas negras. Ela pôs um ovo dourado e, por eras, o chocou, até que finalmente nasceu Eros, o deus do amor. Uma metade do ovo se tornou o Céu, ou Urano, e a outra, a Terra, Gaia. Diz-se que Gaia deu origem a Urano, sem assistência, e posteriormente foi fertilizada por ele.
Os dois tiveram muitos filhos e netos, e alguns de seus filhos ficaram com medo do poder de seus próprios filhos. Foi assim que Cronos, um dos titãs descendentes de Gaia, tentando se proteger, engoliu suas crianças quando ainda eram pequenas. Mas sua esposa Réia escondeu o mais jovem, Zeus, que posteriormente combateu o pai. Vencedor, Zeus liderou os demais deuses para começar a dar vida a Gaia e estrelas a Urano.
Quando faltava apenas criar os homens e os animais, Zeus enviou seus filhos Prometeu e Epimeteu à Terra para criá-los e lhes dar um presente. Epimeteu trabalhou para criar os animais e deu a cada um deles um presente. Depois, Prometeu fez os seres humanos e, quando foi lhes dar o presente, Epimeteu lhe disse que já havia usado todos. Assim, Prometeu resolveu lhes dar o fogo, ainda que só os deuses devessem ter acesso a ele. Quando Zeus ficou sabendo disso, ficou furioso e mandou que seu filho fosse acorrentado a uma montanha, enquanto um abutre comia um pedaço de seu fígado todo dia, até a eternidade. Depois, puniu a humanidade, permitindo que todos os males escapassem da caixa que deu a Pandora e afligissem a Terra.
Japão
Izanagi and Izanami, em pintura de Kobayashi Eitaku (1885).
Há muito tempo, os elementos estavam unidos em um embrião de vida, que começou a misturar as coisas até que a parte mais pesada afundou, e a mais leve subiu, criando um mar lamacento que cobriu toda a terra. Desse oceano, cresceu um broto verde, subindo até atingir as nuvens e se transformar em um deus.
Esse deus cresceu solitário e começou a criar outros deuses. Os dois últimos, Izanagi e Izanami, eram os mais extraordinários. Izanagi criou as ilhas que formaram o Japão, e ambos desceram às ilhas e começaram a explorar, cada qual indo em uma direção e criando todo tipo de plantas. Quando voltaram a se encontrar, decidiram se casar e ter filhos para habitar a terra. Os deuses resolveram que a primeira filha que eles tiveram, Amaterasu, era linda demais para viver no Japão, e a colocaram no céu; ela se tornou o Sol. A segunda filha, Tsuki-yami, se tornou a Lua, e o terceiro filho, Sosano-wo, foi enviado ao mar, onde criou as tempestades.
As principais coletâneas de mitos do Japão são o Kojiki (Registro de Assuntos Antigos) e o Nihon Shoki, ou Nihongi (Crônicas do Japão).
China
Retrato de Pan Gu (Wang Qi, c. 1607).
No início, os céus e a terra eram uma só coisa, e tudo era caos. O universo era como um grande ovo negro, e dentro dele estava Pan Gu. Depois de 18 mil anos, Pan Gu acordou e quebrou o ovo. A parte mais clara e leve dele formou os céus; a matéria mais fria e lodosa ficou embaixo e formou a terra. Pan Gu ficou no centro, sua cabeça tocando o céu, seus pés plantados na terra. O céu e a terra começaram a crescer, e Pan Gu com eles e, depois de outros 18 mil anos, o céu estava mais alto, a terra mais compacta, e Pan Gu ficou entre eles como um pilar, para que nunca mais pudessem se juntar.
Quando Pan Gu morreu, sua respiração se tornou o vento e as nuvens, sua voz, o trovão. Um olho se tornou o sol e outro, a lua. Seu corpo e membros se transformaram em cinco grandes montanhas, e seu sangue formou a água estrondosa. Suas veias formaram caminhos longos e seus músculos terras férteis. As estrelas vieram de seu cabelo e barba, e as flores e árvores, de sua pele e pelos finos de seu corpo.
Segundo algumas versões do mito, suas lágrimas fluíram para formar rios e o brilho de seus olhos se transformou em relâmpagos e trovões. Outra versão diz que as pulgas e piolhos de seu corpo se tornaram os ancestrais da humanidade.
Existem várias versões dos mitos da criação. Por exemplo, entre os Miao, Yao, Li e outras nacionalidades do sul da China, Pan Gu é o ancestral de toda a humanidade, e tinha corpo de homem e cabeça de cachorro, e foi criado pelo deus Gao Xin.
Maias
Uma das serpentes emplumadas em templo em Teotihuacan (Foto: Jami Dwyer/ Wikimedia).
No início, havia apenas Tepeu e Kukumaz. Os dois pensaram, e tudo o que pensavam se tornava real. Eles pensaram a terra, as montanhas, árvores, o céu e os animais. Como nenhum dos animais podia louvá-los, eles formaram seres mais avançados, do barro; mas como eles se partiam ao secarem, fizeram seres de madeira. No entanto, os seres de madeira causaram problemas na terra, e os deuses enviaram uma grande inundação para eliminá-los e recomeçar a criação. Com a ajuda do Leão da Montanha, do Coiote, do Papagaio e do Corvo, formaram quatro novos seres, que foram os ancestrais dos quiché. Kukumaz está relacionado com os deuses-serpente Kukulcán e Quetzalcoatl; alguns pesquisadores dizem que os dois últimos são derivações do original.
Astecas
Estátua da deusa Coatlique, Museu Nacional de Antropologia, Cidade do México.
Nas histórias da criação dos astecas, a mãe é chamada Coatlique, criada à imagem do desconhecido, decorada com caveiras, cobras e mãos dilaceradas. Não existem rupturas em seu corpo, que é um monólito perfeito.
Ela foi impregnada por uma faca de obsidiana e deu à luz Coyolxanuhqui, deusa da lua, e a um grupo de filhos homens, que se tornaram as estrelas.
Escandinávia
Ymir sendo morto por Odin e seus irmãos (ilustração de Lorenz Frølich).
No início, era o vácuo, chamado Ginnungagap. Junto com ele, existia Niflheim, a terra de névoa e gelo, ao norte, e Muspelheim, a terra do fogo, ao sul. Em Niflheim, existia uma fonte, da qual fluía Elivagar (os onze rios). A mistura de fogo e gelo fez com que parte de Elivagar derretesse, formando as figuras de Ymir, o gigante primordial, e a vaca Audhumla, cujo leite era o alimento de Ymir. Audhumla formou o deus Buri, que teve um filho chamado Bor, que foi o pai de Odin, Vili e Ve, que mataram Ymir, cujo sangue provocou uma inundação que matou os gigantes, com exceção de Bergelmir e sua esposa, que escaparam em um barco.
Odin, Vili e Ve colocaram o cadáver de Ymir no meio de Ginnungagap, e dele criaram a terra e o céu. De centelhas vindas de Muspelheim, eles criaram as estrelas, o Sol e a Lua. Depois, os irmãos criaram os primeiros humanos, Ask e Embla a partir de dois toros encontrados na praia.
Austrália
Arte rupestre em Carnarvon Gorge, mostrando histórias do "tempo dos sonhos".
Os mitos da criação dos aborígenes australianos falam de um Tempo dos Sonhos, um tempo em que tudo era silêncio; todos os espíritos da Terra estavam dormindo, ou quase todos. O termo, na verdade, foi criado pelos primeiros antropólogos europeus que estudaram os mitos da região.
O grande Pai de Todos os Espíritos era o único acordado e, gentilmente, ele acordou a Mãe Sol e pediu-lhe que viesse à Terra, acordasse os espíritos e lhes desse formas.
Na época, a Terra era nua e, por onde ela andava, as plantas cresciam. Depois, desceu às cavernas onde os espíritos dormiam e a luz que ela irradiava acordou-os; ela ainda deixou todo tipo de insetos sair das cavernas e se misturar às flores. Seu calor derreteu o gelo, e os rios e correntes do mundo foram criados. Depois, criou os peixes e pequenas serpentes, lagartos e sapos, e acordou os espíritos dos pássaros e outros animais.
Ela chamou todas as criaturas e as instruiu a aproveitar a riqueza da terra e viver em paz uns com os outros, posteriormente subindo para o céu e se tornando o Sol. Depois, ela criou o deus Estrela da Manhã e a deusa Lua; eles tiveram duas crianças que foram enviadas à Terra e se tornaram nossos ancestrais.
Matéria publicada originalmente na revista Sexto Sentido 65 (2005).