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Dimensões Alternativas e Xamanismo
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
15/07/2025 |
Tida como a mais antiga e pura forma de contato com mundos extrafísicos, o xamanismo vem sendo estudado por cientistas e adotado por milhares de pessoas como uma alternativa à sociedade tecnológica, que cada vez mais se afasta da espiritualidade.
Imagem: Mirela Konto/ Pixabay.
Nas civilizações primitivas, os xamãs tinham uma posição privilegiada, atuando como espécie de feiticeiros nas tribos. Eles eram responsáveis pelos rituais de purificação, exorcismo e comunicação com os espíritos, o que conseguiam realizar entrando em estado alterado de consciência e, dessa forma, penetrando em outras dimensões da existência. Agindo em benefício da sociedade, esses seres especiais protegiam as pessoas e criavam elos entre os mundos visível e invisível – algo absolutamente indispensável, uma vez que, no xamanismo, acredita-se que todas as coisas materiais têm seu equivalente espiritual.
Esse contato com outras realidades não é equivalente ao que ocorre com outras linhas religiosas e espirituais; o xamã indígena não incorpora entidades, mas se movimenta no mesmo ambiente em que elas se encontram. Entre as formas mais usadas para entrar em estado alterado de consciência estão ritmos repetidos de instrumentos de percussão e a ingestão de poções vegetais.

Terence McKenna. Foto: Jon Hanna/ Wikimedia (McKenna durante a AllChemical Arts Conference, no Havaí, em 1999).
Já os modernos seguidores do xamanismo empregam outros métodos, como técnicas de hipnose, meditação, luzes, sons ritmados, música, ondas eletrônicas e, ainda que não muito comentado, também as beberagens. O escritor, filósofo e etnobotânico Terence McKenna (1946-2000) – um dos maiores nomes na área e autor de O Alimento dos Deuses (Food of the Gods, 1992. Ed. Nova Era) – entendia que a utilização de certas drogas naturais, especificamente os cogumelos dotados de psilocibina, não só teve grande importância na atuação dos primitivos xamãs como foi um fator preponderante no desenvolvimento da civilização humana. Sem abrir mão da investigação científica que fez parte de sua formação acadêmica, McKenna procurou traçar esse desenvolvimento humano apresentando informações que, se não chegam a convencer os antropólogos ortodoxos, pelo menos levantam uma série de questões interessantes.
Assim como o antropólogo Michael Harner (1929-2018) e outros estudiosos, McKenna defendeu o xamanismo como única forma de restabelecer o contato perdido com a natureza e impedir a destruição do planeta, que já está em curso. Apesar de não ser uma ideia original, ela faz sentido e está relacionada aos movimentos ecológicos que eclodiram nos anos 1960.
Não são muitos os que defendem abertamente o uso de drogas psicodélicas como caminho da salvação, mesmo porque a maioria dos estudiosos entende que o êxtase atingido por meio de danças, cantos e música são mais comuns do que os obtidos com drogas. E entenda-se que, quando McKenna falava de psicodélicos não estava se referindo ao LSD e seus filhotes químicos, mas aos cogumelos e algumas plantas amazônicas, ambos empregados em rituais xamânicos desde a pré-história.
Nesse sentido, a planta amazônica mais conhecida no Brasil é o daime, um tipo de cipó cuja utilização originou o culto do Santo Daime, bastante popular no norte e com penetração nas grandes cidades. Na Amazônia andina existem os correlatos ayahuasca e yagé – praticamente o mesmo cipó com denominações diferentes, todos trazendo o mesmo princípio ativo, conhecido como DMT.
O uso desses cipós na América, assim como o uso da mescalina, são os mais bem documentados historicamente. O escritor Aldous Huxley, por exemplo, registrou em livro suas experiências com mescalina em 1954 – as mais comentadas sem dúvida estão no livro As Portas da Percepção (The Doors of Perception. Biblioteca Azul) –, mas já se conhecia muito sobre a droga bem antes disso. A mescalina é o princípio ativo do peiote, um tipo de cacto utilizado pelos índios no sudoeste dos EUA e que se difundiu até o Canadá. Os primeiros estudos sobre a planta foram publicados em 1886, mas os espanhóis que chegaram ao continente já se referiam a ela.
McKenna entendia que essas plantas têm a vantagem de acelerar o contato com as dimensões extrafísicas, ao contrário de outras práticas como os exercícios de respiração, o yôga ou as diversas modalidades de meditação. Segundo ele, a diferença básica entre as experiências com LSD e similares e aquelas com plantas, é que as primeiras transportam a pessoa para um espaço mental construído a partir de suas experiências passadas ou a lançam para um futuro projetado; as plantas colocariam a pessoa no centro de uma dimensão diferente, que coexiste com a nossa ainda que normalmente não a possamos ver, e na qual existem entidades tentando se comunicar conosco.
Vale lembrar que nem todas as modernas seitas xamânicas aceitam o uso dessas plantas.
Imagem: Judas/ Pixabay.
Em um ritual xamânico, as pessoas têm experiências muitas vezes relacionadas com suas crenças, de forma que pessoas com formação cristã costumam vislumbrar anjos, seres celestiais ou de luz; outras têm encontros com entidades das matas, ou com seu animal totem, o animal de poder – um animal cujas características se assemelham à personalidade da pessoa e que pode ser invocado em inúmeras circunstâncias para ajudá-la. O transe xamânico costuma levar o praticante a locais maravilhosos, de natureza exuberante, mesmo quando seu corpo físico encontra-se em meio ao caos das grandes cidades. Magos, ocultistas e místicos, pela sua formação, entram em contato com todo tipo de seres, de elementais a espíritos superiores. As formas variam, mas costumam dar conselhos e ensinamentos que acabam tendo grande impacto na pessoa, chegando inclusive a transformar sua vida.
Independente da crença e da cultura, o deslocamento para outras realidades é algo comum em todos que já experimentaram o transe das técnicas xamânicas. Alguns especialistas dizem que, nesses momentos, a mente funciona sob condições anormais, produzindo o que hoje chamamos de fenômeno paranormal. Isso levou alguns estudiosos a relacionar a experiência com projeção astral.
O jornalista e historiador Ivar Lissner (1909-1967) já dizia que os xamãs da Sibéria não podiam ser definidos exatamente como magos ou curandeiros, mas como uma espécie de médiuns. Quando atinge o êxtase divino, diz-se que o espírito do xamã deixa o corpo físico e é capaz de produzir uma série de fenômenos, atualmente já estudados em laboratório. Essas habilidades foram confirmadas por vários pesquisadores, inclusive o famoso historiador da religião Mircea Eliade (1907-1986), que presenciou situações nas quais ocorria leitura de pensamento, clarividência e curas milagrosas.
Imagem: Selline Selline/ Pixabay.
O estado de transe ou estado alterado de consciência é comum entre os médiuns modernos. Alguns parapsicólogos não veem muita diferença entre o espírito do xamã, que sai do corpo para desvendar mistérios e visitar lugares, e a mente de um médium, que consegue ver o que acontece em locais distantes. As duas operações necessitam o que o escritor e filósofo Colin Wilson definiu como “concentração e interesse”, apoiados por um conjunto de crenças ou valores profundamente enraizados. A última proposição pode até ser discutível. É verdade que experiências paranormais como telepatia ou precognição ocorrem com maior frequência quando a pessoa acredita que elas irão ocorrer, mas existem inúmeros relatos de fenômenos transcendentais em pessoas sem qualquer interesse no assunto e que até os consideravam uma bobagem.
Talvez a presença desses fenômenos em culturas xamânicas seja maior por não existir desconfiança nelas. Segundo Colin Wilson, “A crença do primitivo em tudo que o xamã lhe diz em transe é irrestrita”, o que não se pode dizer das pessoas ditas civilizadas, que suspeitam de tudo. Mas a questão não é simples. Defensores do moderno xamanismo, por exemplo, afirmam que o transe e o contato com outra dimensão independem da crença, podendo ser obtidos por qualquer um que se submeter aos rituais apropriados. Por outro lado, cientistas afirmam que o simples fato de procurar o xamanismo já indica uma busca por algo além daquilo que a pessoa tem na vida – o que a tornaria predisposta a algum tipo de experiência.
Imagem: Ennaej/ Pixabay.
Em diversas regiões do planeta foram encontradas estatuetas xamânicas mostrando figuras com as mãos unidas no centro do peito – postura que a antropóloga Felicitas Goodman (1914-2005) considerou capaz de induzir o transe. Essa posição é utilizada pelos esquimós, pelos xamãs do México, da Nova Guiné, da Melanésia, e já foram encontradas em pinturas do período paleolítico superior (cerca de 35 mil a.C.) nas cavernas de Lascaux, França, e em estatuetas do antigo Egito.
Alguns acreditam que, além dos ritmos e danças, os xamãs antigos usavam posturas diferentes para entrar em diferentes tipos de transe. Como o xamã costumava resolver os mais variados problemas em sua sociedade – desde a escolha do local apropriado para a caça até localizar pessoas ou objetos desaparecidos – para cada situação ele realizava um tipo de viagem à dimensão dos espíritos. Os índios do Novo México, por exemplo, até hoje utilizam a postura conhecida como chiltan ou “chamada dos espíritos”, quando a alma dos ancestrais é evocada para ajudar em determinadas questões.
Imagem: Jean-François Fageol/ Pixabay.
Durante o transe é muito comum os xamãs verem entidades na forma de animais. O urso é bastante comum em algumas regiões – considerado um animal sagrado desde a pré-história -- mas também aparecem aves e felinos. Certas tribos dizem que cada pessoa tem um animal representativo de sua personalidade e, quando entra em comunicação com o mundo invisível, ela pode vê-lo.
Tanto o animal totem quanto os ajudantes espirituais têm funções parecidas com as dos anjos cristãos, sendo considerados guias de luz. Mesmo entre as tribos mais primitivas ocorre a visão de entidades puramente luminosas e sem forma definida, que tanto podem ser guias para a vida da pessoa quanto para o mundo invisível. Aliás, esse mundo ou dimensão invisível parece funcionar segundo suas próprias regras, o que não exclui a possibilidade de enganos e a necessidade de um conhecimento prévio das leis que o regem. Quando esteve na Amazônia realizando pesquisas sobre o xamanismo, o antropólogo Michael Harner (1929-2018) teve uma experiência de transe durante a qual viu pássaros negros que se diziam Mestres do Universo. Ao relatar isso para o xamã que o orientava na viagem, o xamã riu e disse: “Eles sempre pensam que são”.
Origem dos Xamãs
Uma mulher xamã da Sibéria, no início do século 20 (Foto: Sergei Ivanovich Borisov).
A palavra xamã vem da Sibéria, mas alguns cientistas acreditam que a origem do xamanismo está na Era Paleolítica, 20 ou 30 mil anos a.C.. Segundo eles, desenhos encontrados em inúmeras cavernas representam xamãs realizando operações mágicas.
Os xamãs eram as pessoas mais importantes da tribo. Segundo Mircea Eliade, é possível que eles possuíssem vocabulário bem maior do que os demais membros de seu grupo, o que lhes conferia a qualidade de contadores de histórias e poetas. Assim, seriam eles os responsáveis pela manutenção e transmissão das tradições e história de seu povo. Colin Wilson disse acreditar que o autor original da Epopeia de Gilgamesh, da Suméria, era um xamã.
As tradições xamânicas também referem-se à capacidade do xamã afastar sua alma do corpo, guardando-a em um animal. O antropólogo Sir James George Frazer (1854-1941), autor do clássico O Ramo de Ouro (The Golden Bough, 1890. Zahar Ed.), citou como exemplo o povo samoiedo, de Turukhininsk. Eles afirmam que todo xamã tem um espírito em forma de javali, carregado por toda parte em uma correia mágica. A história repete-se em vários pontos do planeta e, às vezes, ouve-se que os xamãs possuem várias almas, sendo que uma delas é mantida oculta do mundo. A mitologia em torno dos feitos dos xamãs também apresenta histórias sobre combates entre xamãs que, antes de se encontrarem pessoalmente, enviariam seus espíritos para a luta, que apenas eles próprios poderiam enxergar.
Matéria publicada originalmente na revista Sexto Sentido 5 (1999).