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LÚCIFER
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
24/06/2017 |
Portador da Luz ou perpetuador das Trevas? Príncipe da mentira ou responsável por trazer o conhecimento à humanidade? Alguns o entendem como uma simples representação de nossos demônios internos. Outros, como a personificação do Mal.
O estudioso e professor de mitologia comparada John Lash diz que o mundo em que vivemos não é exatamente aquele que imaginamos. O escritor de ficção científica Philip K. Dick elaborou histórias nas quais desenvolveu o conceito de que nós não estamos salvos, como as religiões cristãs dão a entender, mas nos encontramos sob o domínio do Mal. Jesus não nos salvou com seu suplício, como a Igreja afirma, mas falhou na tentativa de penetrar em um mundo dominado por seu inimigo, ainda que tenha deixado ensinamentos compreendidos apenas por uma elite.
Tais afirmações podem parecer estranhas à maioria das pessoas, acostumadas com a noção de que o ser humano é regido basicamente pelo Bem. Na verdade, dizer o contrário pode parecer uma ficção alucinada – o que não deixa de ser verdade, uma vez que alguns escritores de ficção científica dedicaram incontáveis livros sobre a predominância do Mal no universo. Essa ideia, contudo, tem um embasamento histórico e muitos estudos já foram dedicados a ela ao longo dos tempos.
Segundo os adeptos dessa teoria, nós não conseguimos perceber que o mundo é controlado pelo Mal justamente porque o Mal representa o “não conhecimento”. Ele nos enreda em sua teia de ilusões e nos cega para a verdadeira natureza do planeta em que vivemos, da vida que levamos e de nós mesmos. É uma noção que, guardadas as devidas proporções, pode ser comparada à do véu de Maya, presente na filosofia hindu, que nos ilude e impede de ver a realidade em todos os seus aspectos.
Lúcifer. Ilustração de William Blake para A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
O conceito de ilusão, ou sobre a sedução do Mal, tem norteado uma série de atividades em nosso planeta, e talvez já fosse tempo de perceber a verdadeira natureza e o tamanho da encrenca em que nos encontramos. O século 20, por exemplo, foi fortemente marcado pela atuação política, assim como o 21 também está sendo (além do terrorismo e do ódio direcionado a tudo e a todos que sejam um pouco diferentes, de si mesmo, é claro). Para muita gente, isso é a marca indelével do Mal: ódio, guerras, mortes, massacres, violências inimagináveis, preconceito, dissimulação, escravidão, roubos descarados, pobreza, fome, a superficialidade nos relacionamentos com nós mesmos e com os demais – enfim, a mentira sendo elevada à categoria de arte.
Seguindo a história, podemos citar o Gnosticismo como uma das fontes desse modo de pensar. Segundo alguns historiadores, desenvolveu-se em Alexandria durante os primeiros três séculos da era cristã; segundo outros, como o já citado John Lash, é um conhecimento bem mais antigo, pré-cristão; seja como for, a filosofia gnóstica teria se dividido em dezenas de seitas e, assim, sofreu influência de praticamente todas as religiões existentes na época.
Essas seitas entendiam, por exemplo, que o mundo material não tinha sido criado por um Deus supremo, mas pelo Demiurgo, também conhecido como Iadalbaoth, que para alguns historiadores é simplesmente Lúcifer. Tendo criado o mundo visível a partir da matéria, ele só poderia ser imperfeito. A seita gnóstica dos ofitas entendia que Iadalbaoth era orgulhoso, ignorante e vingativo. Estava insatisfeito com sua criação e quis destruí-la por meio de Eva. Sophia, a Sabedoria, resolveu então enviar a serpente para fazer com que o homem comesse o fruto da árvore da sabedoria, sobre a qual o demônio havia fixado um tabu, desejando que o homem se mantivesse no estado de ignorância. Ao adquirir sabedoria, o homem tornou-se capaz de combater Iadalbaoth.
O Velho Testamento é visto pelo Gnosticismo como a representação dessa luta, que se estende à vinda de Cristo e sua morte, por instigação de ninguém menos que Iadalbaoth. Jesus não morreu, segundo esse ponto de vista, para nos salvar, mas para nos dar o conhecimento, a gnosis. Por outro lado, esse conhecimento limitou-se aos iniciados, que muitas vezes formaram grupos fechados, buscando preservar o conhecimento sobre a verdadeira natureza da vida no planeta.
A Queda
A linha histórica mais tradicional diz que o Gnosticismo não conseguiu se sustentar e foi massacrado sob os intermináveis debates entre as diferentes seitas, mas a discussão acerca da natureza do mundo e do Mal que nele reside continuou.
A Queda de Satã. Ilustração para Paraíso Perdido, de John Milton (Gustave Doré, 1866).
O historiador Kurt Seligmann diz que essa noção de Luz e Trevas, divididas e antagônicas, travando uma luta eterna, não fazia parte das religiões da Antiguidade, nas quais o Mal participava do divino, com ambos os princípios se interpenetrando. É assim que, na religião egípcia, o destruidor Set surge como irmão do bondoso Osíris, e na Pérsia a entidade do Mal, Ahriman, tem como origem um pensamento duvidoso de Ormuzd, o deus da Luz. Da mesma forma, os textos apócrifos do Velho Testamento também não apresentam essa noção tão clara, embora os dogmas oficiais da Igreja tenham evoluído de forma tão radical que qualquer explicação diferente daquela oferecida pela Igreja Católica tornou-se passível de punição, geralmente violenta, e fatal.
O melhor exemplo sobre a atuação do Mal segundo a visão cristã, mais especificamente a católica, é a famosa passagem bíblica sobre a queda dos anjos. Segundo a tradição, Lúcifer era a mais bela das criaturas angelicais e se rebelou contra Deus, caindo em desgraça junto com seus seguidores celestes. É apenas no Novo Testamento que Lúcifer passa a ser visto como um ser maligno, muitas vezes chamado de Satanás, ou Satã, e uma série de outros nomes. No Antigo Testamento, ele é tido como “o portador da Luz, a estrela da manhã”, associado ao planeta Vênus.
Satã. Ilustração de William Blake para Paraíso Perdido, de John Milton (1808).
A noção de portador da Luz significa, segundo algumas interpretações, que Lúcifer foi o responsável por trazer o conhecimento à humanidade. Só que, ao fazer isso, ele também trouxe as Trevas, uma vez que só o conhecimento pode promover a distinção entre Bem e Mal.
Estamos diante de duas propostas ligeiramente diferentes, ainda que parecidas. Se Lúcifer trouxe o conhecimento, como ele pode manter a humanidade ignorante sobre a verdadeira natureza da vida? Se o mundo é marcado pelo “não conhecimento”, pelas mentiras, ilusões e seduções criadas pelo anjo caído, ele não pode ser a bondosa entidade à qual alguns estudiosos se referem. Ou então, Lúcifer não tem poder sobre o planeta e a humanidade, mas tenta constantemente fazer com que saibamos a verdade sobre o que nos cerca.
Satã, em ilustração de Gustave Doré para Paraíso Perdido.
Para o historiador Doucet, a presença de Lúcifer no mundo material causou vários problemas ao pensamento cristão: se Deus é onisciente e onipotente, por que permite a existência do Mal? Muitos pesquisadores entendem que essa questão é impossível de ser resolvida, e que a figura do diabo tradicionalizada pela religião não está de acordo com a realidade dos conhecimentos contidos nos antigos textos. Muitos movimentos e seitas provenientes do Cristianismo, como os cátaros, albigenses e, segundo Doucet, também a Ordem dos Templários, fundada em 1118, propunham leituras diferentes do Velho e do Novo Testamento, vendo Lúcifer como o portador da Luz, banido do Céu injustamente.
Sedução
Tudo isso posto, fica uma pergunta: de onde viria a atração pelas Trevas, que parece dominar a raça humana desde tempos imemoriais? Houve época em que inúmeros filósofos procuravam definir como seria o primeiro homem, intocado pelo Mal. Chegaram a imaginar que, em algum lugar do planeta, essa pessoa teria existido em uma espécie de paraíso terrestre.
O diabo visto em A Tentação de Cristo (Ary Scheffer, 1854).
Séculos mais tarde, os pensadores davam a impressão de ter abandonado a ideia do homem puro e decretado a morte de Deus, desiludidos com as ações humanas. Alguns chegaram a afirmar ter visto a face do demônio esculpida a fogo no cogumelo formado por uma explosão atômica, como se Lúcifer estivesse mostrando ao mundo, de uma vez por todas, quem mandava no pedaço.
Os psicólogos, por sua vez, passaram a explicar que Bem e Mal se encontram dentro de nós, e que todas as histórias sobre a queda do homem são uma representação inconsciente de nossa própria incapacidade para lidar com o meio ambiente, para domar nossos demônios interiores. Ainda seguindo essa ideia, Lúcifer e Deus seríamos nós mesmos, e jogar numa entidade suprema a culpa do que é ruim não passaria de uma desculpa para justificar nossos erros, que vêm se repetindo há milênios.
Existe uma linha de pesquisa que propõe uma visão alternativa, imaginando que os deuses de antigamente eram, na verdade, de carne e osso, ou quase isso: seres vindos de outros planetas, com elevado conhecimento científico e tecnológico, que lutavam para dominar a Terra, pelos mais variados motivos. Os aspectos gerais dessa luta teriam sido gravados em nossa memória ancestral, e o tempo se encarregou de fornecer explicações místicas ou religiosas para algo que não conseguíamos compreender.
As linhas que estudam a possível presença de OVNIs e seres extraterrestres em nosso planeta entendem que essa situação continua existindo até hoje. São inúmeros os relatos de conflitos entre diferentes raças extraterrestres – algumas compondo governos paralelos do planeta, conspirando com seres humanos para o controle total da humanidade, enquanto outras tentam impedir que tal situação se concretize.
A ficção científica encampou essas ideias e as apresentou em livros muito interessantes. O escritor cristão C.S. Lewis, por exemplo, imaginou que cada planeta tinha o seu próprio deus, e que o deus da Terra havia se tornado maléfico. Para conter suas ações, as demais divindades o isolaram, bem como o planeta, de certa forma confinando o Mal. Philip K. Dick, autor de Blade Runner, baseou-se no Gnosticismo para imaginar o Bem e o Mal como forças reais, brigando pelo poder no universo. Segundo ele, o Mal realmente domina a Terra, impedindo que o Bem entre, a não ser por meio de uns poucos enviados e algumas mensagens, como a de Jesus Cristo – que, no entanto, não impediram que o planeta continuasse fechado às ações mais efetivas do Bem. O escritor chegou a imaginar que os emissários do Bem teriam colocado uma espécie de satélite em órbita terrestre, enviando mensagens às pessoas que as conseguissem captar, e em determinada época de sua vida afirmou ter recebido uma dessas mensagens. Estamos falando de uma civilização tecnológica extremamente avançada, cujos conhecimentos científicos nos pareceriam, mesmo nos dias atuais, pura magia. Carl Sagan referiu-se a essa possibilidade em seus estudos sobre vida em outros planetas, imaginando uma civilização tão adiantada que não nós teríamos base para sequer começar a entender sua ciência.
E a sensacional escritora Doris Lessing (1919-2013), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2007, elaborou uma série de livros, que se inicia com Shikasta, nos quais a Terra é vista como foco dos interesses de duas forças opostas. A do Bem é representada por Canopus, e a do Mal por Shammat. Devido a um desalinhamento cósmico, as energias passam a fluir de forma negativa no planeta, e Shammat aproveita para fomentar situações de conflito, uma vez que se alimenta dessas forças.
A Queda dos Anjos Rebeldes (Pieter Brueghel, o Velho. 1562).
Conflito
Pode ser que a atração pelo Mal e, mais especificamente, a atração pela figura de Lúcifer, represente uma possibilidade de transgressão numa sociedade excessivamente ordenada, repleta de dogmas e proibições. Em seu livro As Seitas Luciferinas de Hoje, Jean-Paul Bourre vai além e diz que o luciferismo foi uma ciência autêntica, que buscava a reconquista dos poderes perdidos, um saber que permitiria ao homem transgredir as leis do tempo e tornar-se igual aos deuses. O ser humano tem natureza divina, mas com a queda se esqueceu de seu passado, que pode ser relembrado e desperto por meio de ensinamentos específicos.
Imagem de um apkallu, como Oannes (templo de Ninurta, em Nimrud).
Os que defendem a presença de extraterrestres no passado longínquo de nosso planeta percebem nesse ponto de vista um exemplo claro de suas ideias. Ao longo da história das culturas, em praticamente todos os pontos do mundo, sempre existiu um ser superior que trouxe conhecimentos fantásticos e possibilitou o desenvolvimento das civilizações. Tem sido assim desde a Suméria, com o deus Oannes, um apkallu, ou uma espécie de deus que veio do mar para ensinar a escrita, a matemática, a agricultura, a arquitetura, a astronomia e muito mais. Outros seres, que vinham de outros espaços, entendiam que a humanidade deveria permanecer intocada, desenvolver-se por conta própria, e a divergência resultou num conflito que se estendeu a praticamente todo o planeta. E que ainda não chegou ao seu fim.
Não é por acaso que muitos pesquisadores que seguem essa linha de pensamento falam sobre a “destruição nuclear” de Sodoma e Gomorra, entre outras cidades da Antiguidade; ou que Charles Fort (1874–1932), autor do Livro dos Danados, afirmava que uma guerra estava sendo travada no espaço próximo à Terra, e que as sobras desse confronto estavam caindo no planeta; ou que o psiquiatra Wilhelm Reich (1897–1957) afirmava categoricamente que dois tipos diferentes de extraterrestres estavam se digladiando nas imediações do mundo em busca do orgônio. Claro que nem todo mundo concorda com essas ideias, mas é quase uma unanimidade que o conflito entre duas forças antagônicas – ainda que não necessariamente de naturezas opostas – esteja em curso. O problema é que nós estamos no meio e, talvez, sejamos o prêmio.
Mas, afinal, será possível determinar a real situação do mundo em que vivemos? Que entidade ou deus domina nosso planeta, se é que isso realmente acontece? Se Lúcifer, que teria sacrificado a eternidade pelo mais nobre dos ideais – trazer a Verdade e a Luz aos homens como parte de sua rebelião contra o poder opressivo de seu criador –, realmente se transformou em Satanás, uma criatura de puro ódio, podemos dizer que ele está fazendo um trabalho muito bom. Sua ação tem sido tão efetiva que nunca na história conhecida da humanidade houve um período sem guerras e destruições – muitas delas levadas a cabo por aqueles que se diziam os representantes do Bem na Terra. E a situação chegou a tal ponto que vários cientistas acreditam ser impossível reverter o processo de envenenamento e destruição do planeta.
Com frequência temos ouvido que a Nova Era está trazendo novas formas de pensamento à humanidade. Por outro lado, o que podemos constatar é que a sedução e os argumentos do Mal nunca estiveram tão fortes e divulgados, a ponto de ser difícil perceber, dentro dos próprios movimentos tidos como “do Bem”, a verdadeira natureza das coisas. Por outro lado, esse período tão conturbado e de tantos conflitos também parece trazer consigo oportunidades únicas de crescimento. Conhecimentos que, até pouco tempo, só eram acessados por alguns poucos, estão sendo oferecidos abertamente. Hoje não é mais necessário passar por árduos períodos de treinamento, ou viajar até as gélidas imensidões do Himalaia para receber uma iniciação espiritual. Em muitos casos, ela pode ser obtida na casa ao lado da sua.
Em outras palavras, enquanto a atração das sombras parece estar no apogeu, as portas da Luz se escancaram. E, por mais irônico que pareça, segundo o pensamento de muitos, a única coisa capaz de permitir ao homem escolher entre esses dois caminhos é justamente aquilo que Lúcifer, o chamado perpetuador das Trevas, trouxe para o mundo depois de sua queda: o conhecimento do Bem e do Mal.
Erro de Interpretação
Para certos estudiosos é preciso separar luciferismo de satanismo. O primeiro se define como uma busca por conhecimentos ocultos; o segundo seria uma forma deturpada de magia, que já foi origem de muitos atos de violência e assassinatos. Jean-Paul Bourre levanta essa questão ao analisar os desvios tipicamente humanos que motivam, por razões unicamente pessoais, alguns indivíduos a interpretar os rituais à sua própria maneira, transformando-se em monstros cruéis na realização de rituais de sangue sem qualquer sentido prático.
O puro e simples desejo de poder, supostamente conferido pela suprema autoridade do Mal, nada tem a ver com a recuperação de conhecimentos ancestrais. Segundo Bourre, portanto, a verdadeira razão para a queda de Lúcifer foi despertar o homem para sua própria divindade.
Muitos historiadores confirmam que os cultos a Satã desenvolveram-se, em grande parte, devido à própria ação da igreja – além de tornar o diabo atrativo, ela impôs uma série de dogmas que, entre outras coisas, proibiam a utilização de conhecimentos antiquíssimos. Esses cultos tornaram-se, então, uma espécie de anticlericalismo. As formas horrendas atribuídas ao demônio e aos seus auxiliares surgiram justamente nessa época.
Kurt Seligmann diz que o século 13 foi o período de maior prosperidade para o diabo, quando ele passou a ser apresentado, definitivamente, como a antítese do Bem.