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UM INFERNO PARA CADA UM
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
24/06/2017 |
A imagem de um lugar de sofrimentos e torturas pós-morte assombra a humanidade há milhares de anos e várias religiões elaboraram noções complexas a esse respeito.
Quantas vezes você ouviu alguém falar “Vai pro inferno”? Ou a forma mais completa, “Vai pros quintos dos infernos”? Para não ficar só nisso, que tal: “Minha vida está um inferno”; “O diabo que o carregue” (supostamente, para o inferno); “Mas que inferno de...” (complete a frase ao seu gosto). Poderíamos ainda levantar uma série de características do inferno: pode ser quente ou frio, de acordo com a descrição; pode ser muito longe, debaixo da terra, num planeta distante ou no centro do universo, como dava a entender o escritor H.P. Lovecraft; pode ser dentro de nós, ou pode ser a própria vida na Terra. Há inferno para todos os gostos.
Detalhe mostrando cena do inferno (em O Jardim das Delícias Terrenas. Hieronymus Bosch, entre 1480 e 1505).
As expressões ligadas ao inferno são pronunciadas diariamente e, geralmente, sem que as pessoas pensem muito a respeito do local em si; já virou uma forma mecânica de se comunicar desgosto, desprazer, desconforto ou ódio.
Mas quando uma pessoa manda você para o inferno, no que será exatamente que ela está pensando? Naquele lugar que o pensamento cristão tradicional elegeu como o inferno, um lugar quente “pra diabo”, com os demônios ajudantes do capeta enfiando tridentes no seu corpo? Quando alguém manda você ir para o inferno, qual a imagem que surge em sua mente?
Afinal de contas, o que é o inferno? Para muitos, é simplesmente a pior situação que você possa imaginar, a pior coisa que poderia lhe ocorrer, e não é preciso morrer para se chegar até lá.
A verdade é que os infernos podem ser os mais variados possíveis. Conhecemos descrições de guerras travadas aqui mesmo em nosso planeta, nos mais diversos períodos da história, que superavam qualquer narrativa dantesca do inferno, especialmente quando somos nós mesmos que nos tornamos os demônios: carrascos e vítimas ao mesmo tempo.
Ilustração de Gustave Doré, para A Divina Comédia, de Dante Alighieri (O Inferno: Canto 10).
O escritor francês Jean-Paul Sartre escreveu uma peça, Entre Quatro Paredes (Huis Clos, 1944), na qual três personagens discutem eternamente no inferno, que, no caso, é apenas uma pequena sala em que cada um é o carrasco do outro, embarcando numa discussão interminável. Exemplos desse inferno existem aos milhares, ou milhões, bastando observar a vida em certas famílias, em certos relacionamentos. Não é por acaso que algumas pessoas dizem que seus casamentos ou suas vidas são ou se transformaram num inferno.
Basicamente, é uma situação desagradável que se estende, dando a impressão de ser interminável, de não ter uma solução possível. As pessoas projetam os problemas que estão enfrentando até um tempo futuro indeterminado, impossível de se atingir com a razão e no qual a emoção se perde: é para sempre. A situação ruim nubla a razão e impede que sejam encontradas soluções para os problemas, estendendo-os até uma eternidade teórica. Ou compondo um presente eterno de brigas, discussões, falta de razão e violência.
Infernos Históricos
Aparentemente, a noção da existência de um inferno físico – como o local para o qual as almas vão para pagar seus pecados – é típica das religiões que percebem o mundo sobrenatural de forma dualista. É provável que a religião católica apresente a versão mais elaborada desse inferno por ter sido a que mais se desenvolveu, ou que se estendeu por mais tempo. Mas não se trata de uma ideia que surgiu com o Cristianismo, já tendo aparecido na Mesopotâmia e no Egito bem antes disso.
A maioria dos historiadores, antropólogos, mitólogos e todos aqueles que observam essa questão de um ponto de vista científico, entende que a noção de um inferno, em oposição a um local maravilhoso para o qual a alma vai após a morte, surgiu como uma necessidade de estabelecer regras morais para as sociedades.
No Antigo Império do Egito (aproximadamente entre 2700 e 2400 a.C.), Osíris já era visto como o juiz dos mortos e, após a morte, acreditava-se que ocorria a psicostasia, a “pesagem das almas”. Osíris presidia o julgamento, assistido por 42 juízes, além de Hórus, Anúbis, Thot e o devorador de mortos, um animal cujo corpo tinha partes de crocodilo, leão e hipopótamo. O coração do defunto era pesado na balança e, havendo equilíbrio entre o coração e a estátua que era símbolo da deusa da justiça, Maât, o morto era levado a Osíris.
Caronte carrega as almas pelo rio Estige (Alexander Dmitrievich Litovchenko, 1861).
Na mesma época, cerca de 3000 a.C., os sumérios também desenvolviam sua noção de inferno, na Mesopotâmia. Para eles, após a morte, a alma se tornava uma espécie de sombra errante, vagando nas trevas de Kur, um inferno que foi comparado ao Hades dos gregos. Nesse reino nebuloso também havia um devorador de homens, dessa vez um rio que a alma devia atravessar com a ajuda do “homem da barca”, noção que seria retomada posteriormente com os gregos. Estes se reportavam ao rio Estige, que devia ser atravessado pelas almas com a ajuda do barqueiro Caronte. Gilgamés, o herói da grande epopeia suméria, esteve no inferno e conseguiu retornar.
Outros povos da Mesopotâmia, como babilônios e assírios, também desenvolveram sua própria noção de inferno, talvez com alguma herança dos sumérios. Após a morte, tanto ricos quanto pobres, poderosos e humildes, se encontravam no arallu, um mundo subterrâneo do qual nenhuma alma retornava. Se o inferno católico é considerado terrível, pois não oferece saída, esse era ainda pior: não tinha ar ou alimentos, era coberto de pó e lama, e demônios vigiavam as sete barreiras que separam esse mundo do mundo dos vivos. Não havia um local de recompensas, um paraíso, de modo que o Bem e a satisfação deveriam ser atingidos em vida.
Sofrimento e Reencarnação
Anjos Caídos no Inferno (John Martin, c. 1841).
Para alguns historiadores, o Zoroastrismo foi outra religião que surgiu, em grande parte, da necessidade de transformar os conceitos morais da sociedade. Assim, além de reformador religioso, Zoroastro é apresentado como reformador social, com uma pregação voltada para a aristocracia, visando proteger os trabalhadores e impedir a tirania.
O Zoroastrismo entendia que existiam dois princípios fundamentais: Ahura-Mazda, ou Ormuzd, o deus criador de tudo o que é bom; e Angra Mainyu, ou Arimã, criador de tudo o que é mau, tanto no sentido físico quanto espiritual. Os dois se encontram em eterna luta, e essa luta se reproduz na vida dos homens e após a morte. O Zoroastrismo ensinava a imortalidade da alma, seu julgamento e a ressurreição dos corpos. Após a morte, a alma deveria atravessar uma ponte gigantesca sobre um abismo – a Ponte de Chinvvat, ou Ponte da Separação –, e apenas os justos conseguiriam atravessá-la. No entanto, com o tempo, Arimã será destruído e os mortos vão ressuscitar. Estudiosos das religiões apontam algumas semelhanças entre o Zoroastrismo e o Cristianismo, ainda que no último o Mal seja derivado de Deus, ou mais propriamente da “queda dos anjos”, liderados por Lúcifer, e não seja um princípio fundamental como propunha Zoroastro.
Provavelmente, mais antiga ainda seja a ideia de inferno vinda das antigas culturas indianas reencarnacionistas, contida no documento chamado O Código de Manu, ou Leis de Manu. Provavelmente, o documento é proveniente de um período entre os séculos 2 a.C. e 2 d.C., mas lendariamente ele é atribuído ao personagem Manu, que teria recebido as leis diretamente de Brama, por volta do século 12 a.C. Além de informar as diferentes condições de reencarnação, o Código fala sobre a possibilidade das almas sofrerem no inferno, entregues às torturas infligidas por Yama. Essa passagem pelo inferno purifica a alma que, então, pode reencarnar em novo corpo.
O Espiritismo, que também se apoia na crença da reencarnação, vê a questão de forma diferente. Não existe um inferno propriamente dito, e certamente não como o cristão, do qual os condenados só saem após o final dos tempos. A alma ou espírito sofre as consequências de suas atitudes na Terra, na vida encarnada. Como a alma já traz consigo o castigo ou o prêmio, não existe a necessidade de se imaginar um lugar específico para o qual ela vá após a morte. Segundo escreveu Allan Kardec em O Céu e o Inferno (1865): “(...) O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu igualmente onde houver almas felizes”.
É uma situação próxima àquela descrita anteriormente, em que cada um projeta seu próprio inferno. Para os espíritos com maiores imperfeições, a situação é evidentemente pior. Hoje em dia se fala muito, no Espiritismo, na região conhecida como Umbral, para onde vão os espíritos de suicidas, assassinos e pessoas que cometeram outros tipos de atrocidades. Nessa dimensão pode muito bem ocorrer de o espírito repetir sem cessar tudo aquilo que o levou a cometer seu crime, sem que nem mesmo perceba o que está ocorrendo. Ele não tem consciência de ter morrido e estar vivendo em outra dimensão. Também em O Céu e o Inferno, Kardec escreveu que “(...) um fenômeno frequente entre os Espíritos de certa inferioridade moral é o acreditarem-se ainda vivos, podendo esta ilusão prolongar-se por muitos anos, durante os quais eles experimentarão todas as necessidades, todos os tormentos e perplexidades da vida”.
Para o Espiritismo, a Terra estaria entre os mundos de expiação e de provas (Imagem: NASA/SDO/AIA).
O espírito André Luiz, manifestando-se por meio de Chico Xavier, falou longamente sobre esses outros planos de existência, dizendo que no Umbral o espírito continua muito próximo do plano terrestre, material, e mantém as sensações físicas próprias da vida na Terra. Esse local é associado à loucura, à alucinação e dores permanentes, tanto físicas quanto mentais. Contudo, outros espíritos procuram ajudar os que sofrem e tirá-los de lá, fazendo com que percebam o tipo de vida que tiveram na encarnação terrestre, e se arrependam sinceramente disso. Portanto, ainda que seja um local muito ruim, está longe de ser a danação eterna do Catolicismo.
Por outro lado, os mundos em si também são divididos em categorias, de modo que se aproximam da noção de um lugar específico no qual expiar seus pecados e seus males. Assim, existem os mundos primitivos; os mundos de expiação e de provas – ainda dominados pelo mal; os mundos regeneradores; os mundos felizes, nos quais o bem supera o mal; e os mundos celestes ou divinos, onde se encontram os espíritos já purificados. A nossa Terra estaria entre os mundos de expiação e de provas, o que para muitos pode ser visto como uma antessala do inferno. “(...) Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam. Ficam nos mundos inferiores a expiarem as suas faltas pelas tribulações da vida, e purificando-se das suas imperfeições até que mereçam a encarnação em mundos mais elevados, mais adiantados moral e fisicamente. Se pudermos conceber um lugar circunscrito de castigo, tal lugar é, sem dúvida, nesses mundos de expiação, em torno dos quais pululam Espíritos imperfeitos, desencarnados à espera de novas existências que lhes permitam reparar o mal, auxiliando-os no progresso” (O Céu e o Inferno. Allan Kardec).
Outros estudiosos, no entanto, entendem que esses locais de sofrimento não são tão diferentes daqueles citados pelas demais religiões, com a diferença de não se falar na presença do demônio em si, e do sofrimento ser restrito a um determinado período de tempo, que pode ser maior ou menor, dependendo da capacidade do espírito em se regenerar. Kardec disse que existem espíritos que se encontram mergulhados em densa treva, ou em absoluto isolamento no espaço, sem saber o que está acontecendo. É um inferno tão terrível quanto o que se cria aqui mesmo na Terra.
O Inferno na Terra
Segundo algumas especulações muito comentadas na literatura de ficção científica, qualquer pensamento que já tenha existido na mente de um ser humano, ou que venha a existir, originou, origina e originará uma nova realidade, localizada em algum lugar ou dimensão do universo. Assim, tudo o que um dia tenha sido imaginado ou que ainda o será, existe de fato; não apenas como concepção, abstração, mas como uma existência física no universo. Sendo este considerado infinito, nada mais lógico do que se imaginar que todas as possibilidades devem estar contidas no universo, de modo que os infernos seriam apenas uma pequena parte dele.
Inferno (Herrad von Landsberg, 1180).
Só podemos aceitar ou acreditar na possibilidade da alma ou espírito se projetar até esses locais, se igualmente aceitarmos as inúmeras narrativas fornecidas por médiuns e sensitivos ao longo da história humana no planeta. Em contato direto com essas dimensões, mais ou menos próximas da nossa, eles têm fornecido as indicações do que se pode esperar, para o melhor e para o pior. Para a psicanálise, o inferno é construído aqui mesmo na Terra pelos demônios interiores dos seres humanos, suas culpas, seus medos, suas falhas, que conduzem as pessoas a estados de verdadeira expiação dos pecados, ainda em vida.
Mas também parece não haver como negar que, nos últimos milhares de anos, estivemos construindo um inferno extremamente competente aqui na Terra, o que confirmaria a noção de que vivemos num mundo de expiação, dominado pelo Mal.
Uma noção derivada do Gnosticismo entende que nosso mundo não foi elaborado por Deus, mas por outra entidade, às vezes chamada de Demiurgo, outras vezes, apenas entendida como sendo o demônio, ou Lúcifer. Não conseguiríamos perceber exatamente a nossa situação por estarmos “dormindo”, alheios à realidade que nos cerca. Entidades espiritualmente elevadas tentariam de todas as formas entrar em contato conosco para nos fazer “acordar”, mudar nossa atitude e transformar o mundo.
Independentemente de se acreditar ou não na existência do inferno, não seria nada mal se conseguíssemos atingir esse despertar e transformar nosso inferno terrestre num local mais agradável. Mesmo que estejamos apenas de passagem por aqui.
Os Nomes do Inferno
Inferno
Ou infernus. O nome mais comum (do latim inferum, inferi), designando um local de sofrimento localizado abaixo da terra.
Hades
O inferno grego, e também o nome do deus do mundo subterrâneo, filho de Cronos. Possuía um capacete mágico que tornava invisível quem o usasse, e que é visto como um símbolo da morte.
Sheol
A denominação do inferno para os hebreus. Segundo os estudiosos, é uma concepção que fica entre a ideia do túmulo, do mundo subterrâneo, do estado de morte e do estado de punição. É citado em várias passagens da Bíblia.
Geena
Ou Gehena, nome utilizado frequentemente no Novo Testamento. Vem do hebreu ge-hinnom (ou ge-ben-hinnom; ge-benê-hinnom), significando “vale dos filhos de Hinnom”, local ao sul de Jerusalém, atualmente conhecido como Wadi-er-rababi. Segundo se diz, antigamente era onde se realizava o terrível culto a Moloch.
Poço Sem Fundo
Um dos inúmeros nomes pelos quais o inferno é apresentado no Corão.