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MONSTROS

OS DRAGÕES

Autor Gilberto Schoereder
01/10/2021

Os dragões fazem parte da mitologia, das lendas e do folclore dos mais variados povos e, provavelmente, está entre as criaturas imaginárias mais antigas do planeta.


O dragão Mushussu no Portal de Ishtar, no Museu do Antigo Oriente, em Istambul (Foto: Dosseman/ Wikimedia).

Jorge Luis Borges escreveu que “O dragão possui a capacidade de assumir muitas formas, mas estas são inescrutáveis”. E as formas são, certamente, centenas e variáveis, de acordo com a cultura e a época. O que é certo é que os dragões estão entre as criaturas lendárias e míticas mais disseminadas no planeta, exercendo uma atração irresistível, seja lá em quais narrativas eles surjam.
E não apenas as formas são diferentes, mas as personalidades dos dragões também variam de acordo com a narrativa; eles tanto podem ser criaturas inteligentes quanto monstros ignorantes; tanto podem fazer o bem quanto o mal.

O sirrush no Portal de Ishtar, Museu de Pérgamo (Foto: Allie Caulfield/ Wikimedia).

É provável que a representação mais antiga do dragão venha da Suméria, onde ele era conhecido como Sirrush, ou Mushussu. Foi imortalizado no famoso Portal de Ishtar, da Babilônia, atualmente reconstruído no Museu de Pérgamo, em Berlim, e com algumas partes espalhadas por museus do mundo inteiro. Uma representação mais antiga, datando de cerca de 2.100 a.C., mostra o dragão em pé, e com pequenas asas. A representação posterior, do Portal de Ishtar, apresenta uma criatura diferente, sem asas, com o rabo de serpente com um ferrão venenoso, as pernas traseiras de águia, e a parte dianteira, inclusive as patas, de leão; tem a cabeça de serpente com chifres. Carol Rose diz que um selo cilíndrico da Suméria, datado de 4 mil a.C., mostra um dragão atrás da deusa Bau.

Representação do Mushussu em um vaso dedicado a Gudea (c. 2.100 BCE).

O Mushussu está diretamente ligado à mitologia local de Tiamat que, segundo Carol Rose, é o dragão cósmico, um dragão fêmea descrito no Enuma Elish – o texto babilônico que narra o mito da criação –, como tendo um imenso corpo sinuoso, impenetrável a armas, com duas pernas dianteiras, um rabo imenso e grandes chifres na cabeça. Segundo Leo Ruickbie, o Enuma Elish não especifica a forma de Tiamat, ainda que outros mitos mesopotâmicos a apresentem como um dragão ou serpente.
A especialista em estudos asiáticos Patricia Bjaaland Welch escreveu, em seu livro Chinese Art: A Guide to Motifs and Visual Imagery (2008), que as descrições ancestrais dos dragões podem ser encontradas na China na cerâmica do período Neolítico – que vai aproximadamente de 10 mil a 3 mil a.C. – e também em vasos rituais chineses da Idade do Bronze – aproximadamente entre 3.100 a 300 a.C., o que indicaria um desenvolvimento da mitologia independente da mitologia do Oriente Médio e talvez tão antiga quanto.

 

Carol Rose disse que a descrição geral do dragão ocidental é muito parecida com a do dragão oriental, tendo um corpo enorme, alongado e coberto de escamas, semelhante a um crocodilo, frequentemente com asas grandes parecidas com as dos morcegos, com pernas grandes semelhantes às de um lagarto e com garras compridas. Além disso, pode ter uma crista dentada que se estende até um rabo longo com espinhos. A cabeça pode ser semelhante à de um lagarto ou crocodilo, com uma crista ou chifres, com as narinas e a boca com dentes imensos podendo exalar fogo. Certamente, essa é a descrição que mais se assemelha às representações mais populares do dragão.

                                                                                                                        A Destruição de Leviatã (Gustave Doré, 1865).

No entanto, segundo Rose e outros pesquisadores, as descrições podem incluir composições de outros animais, como a cabeça de elefante, na Índia, ou, no Oriente Médio, a cabeça de um pássaro ou de leão; e ainda, diversas representações com cabeças de serpentes. As cores também podem variar bastante, e diz-se que eles habitam regiões isoladas como pântanos, montanhas, desertos, castelos em ruínas, cavernas e florestas. Na maioria das descrições, os dragões são seres predadores, tanto de animais quanto de humanos, e podem ter suas ações acalmadas pelo sacrifício de jovens, sempre que a população de algum local estiver enfrentando problemas com as criaturas.
Daniel Ogden, professor de História Clássica e Antiga da Universidade de Exeter (autor de Drakon: Dragon Myth and Serpent Cult in the Ancient Greek and Roman Worlds, 2013), diz que a palavra “dragão” surge na antiga Grécia, como drakon, passando para o latim draco – ambas significando todo tipo de serpente, não necessariamente mitológicas –, e para o francês dragon. Carol Rose também diz que a palavra é derivada do grego antigo, draconta ou drakon, significando “observar” ou “olhar para”, o que, segundo ela, “(...) foi empregado ao monstro como atributo de guardar alguma coisa. Podem ser os pomos dourados, como nos mitos gregos, ou tesouros acumulados, como em outras culturas da Europa ocidental”.

Thor Lutando com Jörmungandr (Henry Fuseli, 1790).

Historicamente, é bem clara a relação entre as imagens de dragões e as imagens das serpentes. Carol Rose lembra que muitas descrições mais antigas representavam-nos como imensas serpentes com asas. Leo Ruickbie diz que o dragão surge em diversas mitologias como uma criatura primordial, frequentemente representando um estado de caos que precisa ser ordenado ou ultrapassado por uma raça mais jovem de deuses guerreiros ou heróis, e muitas vezes é uma serpente. É assim com o já citado Tiamat da Mesopotâmia, derrotado por Marduk; com Tífon, da mitologia grega, derrotada por Zeus; com Lotan, na mitologia cananeia, serpente derrotada pelo deus Hadad. A mitologia cananeia provavelmente inspirou o Leviatã do Judaísmo, derrotado por Yahweh. E também a Serpente Midgard, ou Jörmungandr, da mitologia nórdica, derrotada por Thor.

O dragão Fafnir guarda seu tesouro, em ilustração de Arthur Rackham (1911), para a ópera Siegfried & The Twilight of the Gods, de Richard Wagner (1876).

O estudioso também cita o poema épico Beowulf – com data indefinida entre os anos 700 e 1.000 – cujo herói Beowulf mata um dragão que exala fogo. E, segundo Ruickbie, esse dragão exemplifica a ideia popular do dragão que guarda um tesouro. Segundo se diz, essa foi a primeira vez que um herói matador de dragão surgiu na literatura inglesa, mas ele também era conhecido na Volsunga Saga, da Islândia, na qual o herói Sigurd mata o dragão Fafnir.
Essa visão do dragão como uma criatura capaz de soltar fogo é, segundo Leo Ruickbie, uma adição tardia, uma vez que nas descrições mais antigas, como a da Suméria, o dragão é a personificação da água.

Segundo Carol Rose, “Do antigo Oriente Médio, o desenvolvimento do conceito do dragão migrou com diferentes povos e transformou-se em sua descrição, a leste, através do subcontinente indiano até o Oriente, e a oeste, através das culturas europeias”. Como as civilizações da Mesopotâmia são, provavelmente, as mais antigas do planeta, é bem possível que o conceito tenha se desenvolvido inicialmente na região e, posteriormente, se espalhado pelo resto do planeta. Mas as teorias a respeito da abrangência da figura do dragão propõem outras possibilidades, como a da historiadora de ciência antiga, Adrienne Mayor, em seu livro The First Fossil Hunters: Dinosaurs, Mammoths, and Myth in Greek and Roman Times (2000), no qual propõe que as histórias de dragões podem ter surgido devido à descoberta, em tempos ancestrais, de fósseis de dinossauros e outros animais pré-históricos.

O deus Apolo matando a Python (Hendrik Goltzius, 1589).

As descrições dos dragões na antiga Grécia e na antiga Roma também apresentam-nos com características mais parecidas às das serpentes, porém aladas. Assim, na antiga arte romana, o draco, ou dragão, é retratado como uma serpente imensa com asas semelhantes às dos morcegos, e algumas histórias apresentam essas criaturas como capazes de exalar fogo. As histórias originárias da mitologia da Grécia citam, por exemplo, a serpente Python, guardiã do Oráculo de Delfos, e que foi morta pelo deus Apolo.

            São Jorge e o Dragão (Albrecht Dürer, 1501-1504).

Rose também diz que a mitologia da Europa ocidental anterior ao Cristianismo apresentava uma relação ambivalente entre dragões e humanos, com as criaturas às vezes sendo apresentadas como protetoras, outras como adversários terríveis a serem combatidos e derrotados. Porém, com a chegada do Cristianismo, os dragões passaram a ser demonizados e tidos como agentes do demônio. “Uma grande diversidade de santos matadores de dragões”, diz Rose, “desenvolveram-se nos textos e tradições cristãs, o mais famoso possivelmente sendo São Jorge (no terceiro século)”. Na lenda, São Jorge derrota um dragão que exigia sacrifícios humanos de uma vila. Quando uma princesa é escolhida como a próxima vítima, São Jorge entra em ação e a resgata após acabar com o dragão. Alguns estudiosos, como Kevin Tuite, da Universidade de Montreal, entendem que, antes de São Jorge, a lenda foi atribuída a outros santos, entre eles São Teodoro, ou Teodoro de Amásia (século 3).

Talvez tenha sido principalmente durante a Idade Média europeia que os conceitos dos dragões mais tenham se desenvolvido e se tornado populares, até chegar à versão mais moderna, consagrada especialmente pela literatura. Carol Rose lembra que, nessa época, os dragões, em suas diferentes versões e até mesmo diferentes nomes, foram incorporados aos já citados bestiários, e também passaram a ser vistos como símbolos. Foi assim que os alquimistas apresentaram o dragão como símbolo, inicialmente, do mercúrio, e, posteriormente, dos próprios alquimistas.
Também é a época em que surgem inúmeros romances nos quais prevaleciam os valores e códigos dos cavaleiros, muitas vezes enfrentando dragões que representavam o mal, ou o próprio diabo. Leo Ruickbie cita o Anglo-Saxon Chronicle, a Crônica Anglo-Saxônica, um conjunto de crônicas narrando a história dos anglo-saxões, reunidas por volta do ano 890, no qual existe o relato de dragões que foram vistos atravessando os céus da Nortúmbria, o que era encarado como sinal de desastres próximos.

O wyvern, representado na bandeira do antigo reino de Wessex.

Ruickbie lembra que muitas descrições dos bestiários foram influenciados pela História Natural (Naturalis Historia, 77), do romano Plínio, o Velho (23-79), já comentado na matéria Aqui Vivem os Monstros, e no que diz respeito ao dragão, em particular, uma história contada por Plínio sobre uma guerra entre o dragão e o elefante, que aparece em diferentes épocas, desde o tratado De Natura Animalium, do romano Claudius Aelianus (c. 174-235) até as obras de Bartholomeus Anglicus, no século 13. No entanto, lembra Ruickbie, os autores posteriores a Plínio acrescentaram vários adornos às histórias e descrições dos dragões, em particular relacionando-os com as histórias da Bíblia. Um exemplo é o bestiário De Bestiis Et Allis Rebus, de Hugo de Folieto (c. 1096-1172), no qual o dragão não apenas ganha algumas características do basilisco como é relacionado com o Diabo e com uma passagem da Bíblia. Não por acaso, Hugo de Folieto era sacerdote e declarou que “O dragão, a maior de todas as serpentes, é o demônio, o rei de todo mal”, relacionando-o com o Leviatã da Bíblia, citado anteriormente.
O famoso explorador e comerciante Marco Polo (1254-1324), citado na matéria anterior, também apresentou uma descrição de um animal semelhante a um dragão no livro As Viagens de Marco Polo, afirmando que ele tinha o comprimento de dez passos, com apenas duas pernas dianteiras com garras semelhantes às da águia ou do leão, uma cabeça imensa com olhos grandes, a boca com dentes pontudos e grande o bastante para engolir um homem inteiro. Segundo Leo Ruickbie, quando a versão ilustrada de As Viagens foi publicada em 1403 com o título Livre des Merveilles, suas serpentes ganharam asas e pareciam-se com um dragão, ainda que, tendo apenas duas pernas, tecnicamente deveriam ser considerados como uma espécie de serpe (wyvern). Essa criatura, por sua vez, é uma mistura de várias outras; segundo Carol Rose, ela tem o corpo de uma serpente, a cabeça de dragão, asas de morcego, e apenas duas pernas dianteiras, com uma longa cauda de serpente com espinhos. Foi outra criatura bastante comum nos bestiários medievais e que também passou a fazer parte dos brasões das famílias da Europa.

Uma representação de um dragão chinês na bandeira da dinastia Qing (1644-1912).

Na China, o dragão ocupa uma parte considerável da mitologia e permaneceu uma criatura popular até os tempos modernos, sendo conhecido pelo nome Lung ou Long. Como Carol Rose explica, ele é uma das criaturas celestiais, responsável pelos elementos água e fogo, e sempre esteve associado ao poder terrestre dos imperadores. A pesquisadora diz que o dragão chinês não tem uma descrição definitiva, uma vez que existem subclasses de dragões, cada qual com sua própria característica. No entanto, Leo Ruickbie cita o historiador e filósofo chinês Wang Fu (c. 82-167), que apresentou uma descrição geral do dragão com cabeça de camelo, chifres de veado, olhos de demônio, orelhas de vaca, o ventre de marisco, escamas de carpa, garras de águia e patas de tigre. Também teria uma espécie de bolsa de ar em sua cabeça, o que lhe daria a capacidade de voar.
Os tipos de dragões descritos nas histórias chinesas são inúmeros, adquirindo características de diversos animais e, assim, também assumindo diferentes nomes, mas raramente são apresentados com asas. E, ao contrário da relação ambivalente do dragão ocidental com os humanos, o dragão oriental dificilmente tem atitudes violentas ou cruéis. Carol Rose diz que as subdivisões dos dragões chineses têm a ver com suas responsabilidades. Assim foi que, no ano 1.101, um imperador categorizou os dragões em: Dragões Pretos, responsáveis pelos lagos misteriosos; Dragões Azuis, que fornecem compaixão e são associados à coragem; Dragões Vermelhos, que moram no sul e são associados com os prazeres do verão e responsáveis pelos lagos de águas frescas; Dragões Amarelos, que trouxeram o sistema de escrita aos humanos, além de ouvir e conduzir preces aos deuses; Dragões Brancos, que exaltam a virtude, mas também podem preceder um período de escassez.

Representação japonesa de um dragão voando sobre ondas turbulentas (Utagawa Kuniyoshi, c. 1831).

Carol Rose também refere-se aos chamados Reis Dragões, normalmente associados com o comando de um elemento, ou o elemento de uma região em particular. “Normalmente”, ela diz, “são dragões poderosos e esplêndidos, habitando magníficos castelos de cristal, mas subservientes e emissários dos deuses”, e surgem nas mitologias da China e do Japão.

                                                                                  Dragão japonês (Katsushika Hokusai, 1844).

As representações dos dragões no Japão são parecidas com as chinesas, mas também tiveram influência das representações vindas da Índia. E, como os dragões ocidentais, os dragões japoneses também apresentam uma relação ambivalente com os humanos; existem histórias bem semelhantes às ocidentais, como a de um dragão que devora jovens mulheres e é enfrentado por um deus.
Segundo Marinus Willem de Visser, autor de The Dragon in China and Japan (1913), os dois registros históricos mais antigos do Japão, o Kojiki (680) e o Nihongi (720), trazem referências aos dragões, mencionados de várias formas, mas principalmente como deuses da água com formato de serpente ou dragão.

 

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