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O PARAÍSO NO GELO
Autor |
Gilberto Schoereder |
|
04/02/2025 |
Entre as lendas de civilizações desaparecidas, a da Hiperbórea talvez seja a menos documentada. Ainda assim, está relacionada a quase todos os grandes mitos referentes a culturas fantásticas em um passado remotíssimo da humanidade.
Imagem: Samuel Kamau/ Pixabay.
A Hiperbórea foi apresentada na mitologia grega como uma terra situada no extremo norte do mundo conhecido à época e, segundo se diz, a primeira menção conhecida a essa terra fantástica surgiu no livro História, de Heródoto, escrito por volta do ano 450 a.C., ainda que Heródoto, o mais famoso historiador grego, tenha mencionado que tanto Hesíodo quanto Homero, que viveram cerca de 4 séculos antes do historiador, já haviam citado a existência da civilização.
Com o tempo, a Hiperbórea foi identificada como sendo uma interpretação errônea das terras escandinavas e da Bretanha, mas as lendas cresceram ao longo dos séculos, com a civilização sendo apresentada às vezes como um continente, outras como uma cidade, mas geralmente como um local de prosperidade no qual o frio característico do norte não teria efeito. A antiguidade do local mítico varia de acordo com a fonte. Estudiosos ligados à Teosofia falam em milhões de anos e, segundo Helena Blavatsky, os habitantes locais eram a origem do que ela chamou de segunda “raça-raiz”, seres não inteligentes e etéreos. Alguns dizem que a Hiperbórea antecedeu a Lemúria – outro continente que teria desaparecido – e que as informações a esse respeito estariam contidas no Livro de Dzyan, apresentado por Blavatsky como uma obra de origem ancestral tibetana.
Helena Blavatsky.
Algumas versões apresentam a Hiperbórea como sendo uma série de ilhas, ou apenas uma cidade cercada por gelo, mas na qual o clima era paradisíaco. Outras vezes, entende-se que não havia gelo no Ártico na época em que a civilização hiperbórea ali se desenvolveu. O clima da região só teria mudado depois de uma alteração do eixo da Terra.
Ainda assim, muitos pesquisadores entendem que a Hiperbórea é apenas uma variação de outras lendas mais constantes no planeta, como a da Atlântida. Assim, a mesma lenda teria diferentes versões, dependendo da cultura e civilização que a ela se referisse.
Na visão mística, os habitantes seriam quase transparentes, vivendo isolados do restante do mundo, cercados por montanhas altíssimas. Algumas vezes, são apresentados como superiores aos demais humanos, com inteligência superdesenvolvida e poderes mentais fora do normal. No entanto, essas descrições nem sempre são consideradas parte das histórias originais, mas uma versão manipulada para se encaixar na chamada Cosmogonia Geral, teoria desenvolvida pelo austríaco Hans Horbiger (1860-1931), e que posteriormente foi utilizada pelos ocultistas nazistas, em parte para reivindicar uma superioridade sobre os demais povos do planeta.
Versões mais recentes apresentam os habitantes da Hiperbórea como seres extraterrestres, chegados à Terra em épocas muito remotas. Aqui, teriam estabelecido uma colônia, da qual se teria originado toda a raça branca que, assim, não teria qualquer relação genética com as demais raças do planeta. Claro que essa ideia é rechaçada por qualquer cientista sério como uma tremenda bobagem. Mais do que isso, a noção também se encontra relacionada com as noções de supremacia racial que ainda existem na Terra.
Imagem: Square Frog/ Pixabay.
Alguns pesquisadores do assunto entendem ser possível que os hiperbóreos fossem uma casta de alguma civilização, uma vez que as referências a eles se encontram dispersas em lendas, sem muitas informações concretas; além do mais, não existem ruínas que justifiquem a existência de uma civilização de tal porte no Ártico.
Alguns textos antigos servem como fonte de referência. É o caso da obra de Hecateus de Mileto (550 - 475 a.C.), o autor de Periegesis, considerado o mais antigo tratado de geografia. A obra se perdeu, mas ficaram as descrições de povos e lugares; no mapa reconstituído, a terra dos hiperbóreos situava-se acima da Europa. Também Diodoro Sículo (90-21 a.C.) escreveu sobre a Hiperbórea, assim como sobre a Atlântida e as amazonas, em sua obra Biblioteca Histórica. Surgem referências a uma ilha, menor do que a Sicília, ao norte da Gália, o que levou alguns historiadores a tentar identificar a Hiperbórea como sendo a Islândia. Por outro lado, as informações a respeito da agricultura da Hiperbórea não estão de acordo com o que se conhece da Islândia.
Na própria narrativa de Diodoro surgiram outros ingredientes que levaram alguns pesquisadores a conectar o mito com a presença de extraterrestres. Diz-se que o deus Apolo ia para a ilha Hiperbórea a cada 19 anos, e que ele teria oferecido a um mago hiperbóreo uma “flecha” com a qual poderia viajar pelo ar. Outra versão diz que o próprio Apolo seria um hiperbóreo, com a capacidade de se deslocar pelo ar. A flecha citada no texto passa, então, a ser vista como uma espécie de máquina, como os vimanas citados nos textos da antiga Índia.
O historiador Jean Markale, especialista em celtas, diz que Diodoro incluiu a Bretanha entre as ilhas da Hiperbórea, e que lá o solo produzia duas colheitas por ano. Ele também descreve o local como o de nascimento da deusa Leto, o que explicaria por que os habitantes do local reverenciam particularmente Apolo, filho de Leto. Também diz que ele menciona a existência de um imenso templo circular, presumivelmente Stonehenge.
Thule, apresentada como uma ilha com o nome Tile na Carta Marina, de Olaus Magnus (a partir do original de 1539).
O nome de Tule, ou Thule, também surge frequentemente relacionado ao da Hiperbórea; às vezes, é uma ilha, outras é a própria capital da Hiperbórea. Como ela, também foi relacionada às lendas sobre a origem dos povos germânicos, ou da raça branca original do planeta. Diz-se que seus habitantes tinham conhecimentos fantásticos de magia, que se espalharam pela Europa entre alguns iniciados, e se perpetuam até os dias de hoje.
Jacques Bergier e Louis Pauwels, autores do sensacional O Despertar dos Mágicos (1960), disseram que foi dessa lenda que se originou a Sociedade Tule, uma organização secreta que foi uma das responsáveis pelo nascimento e desenvolvimento da doutrina nazista na Alemanha. Os dois pesquisadores situaram Tule no deserto de Gobi, há 3 ou 4 mil anos. Ela teria sido destruída por uma catástrofe, talvez atômica, que transformou Gobi no deserto que é hoje. Os sobreviventes, liderados por Thor – que ficou conhecido como um deus nórdico – se dirigiram à Europa e originaram a raça ariana. Outras versões dessa história confundem ainda mais as lendas sobre as antigas civilizações, afirmando que os sobreviventes, que possuíam grandes conhecimentos, se dirigiram ao Himalaia, fundando uma civilização subterrânea, o que liga essa lenda à de Agartha.
A relação de Tule com a presença de extraterrestres na Terra está implícita na versão da história segundo a qual existiria em Tule uma espécie de passagem dimensional; ela permitiria que os viajantes saíssem do nosso universo em direção a outro, e vice-versa. O maior problema com relação a essas lendas é que – ao contrário do que ocorre com algumas das civilizações desaparecidas da América – elas não encontram respaldo algum em ruínas ou gravações em pedra.
Hans Hörbiger.
Para Pauwels e Bergier, a principal fonte dessas lendas foi mesmo a teoria da cosmogonia glacial de Hans Hörbiger, também conhecida como “doutrina do gelo eterno”, do original alemão Welteislehre, o título do livro que ele publicou em 1913. Com essa doutrina, os nazistas pretendiam acabar com o que chamavam de “falsas ciências”, e as ideias começaram a circular pela Alemanha em 1925, através da publicação de dezenas de livros e uma revista mensal.
Basicamente, a doutrina entendia que a humanidade tinha uma origem muito mais longínqua no tempo do que o que normalmente é ensinado pela ciência, ou o que os nazistas chamavam de "ensinamentos falsos da Bíblia judaico-cristã". Desenvolveu-se, então, a noção de que, há milhares de anos, existia uma raça de homens tão poderosos que podiam ser considerados verdadeiros deuses, assim como as civilizações dos gigantes. No entanto, essas noções existem em inúmeras lendas ao redor do mundo, e nunca foram exclusividade da cosmogonia nazista, que apenas se apoderou de algumas ideias e transformou para os seus interesses de dominação e poder.
¨ Imagem: meraki1/ Pixabay.
Hörbiger também refutava a teoria do big-bang, da origem do universo, entendendo que um corpo celeste milhões de vezes maior do que o Sol teria colidido com um planeta de gelo, igualmente gigantesco, dando origem aos planetas, todos compostos de gelo, com exceção da Terra. Aqui, ocorre a constante luta entre o gelo e o fogo. Diz ainda que três luas já caíram sobre a Terra, e a atual Lua, a quarta, também deverá cair, explodindo ao se aproximar do planeta. O fim de cada era geológica seria, então, explicado pela queda de uma das luas.
Alguns historiadores refutam não apenas a existência real de uma Hiperbórea como também da Lemúria, Mu e da Atlântida. O que os cientistas dizem é que, no final da última Idade do Gelo, a ponte de terra entre a Bretanha e o continente foi separada por um grande fluxo de água, e esse evento seria a origem dos mitos a respeito das civilizações desaparecidas.
Mas não é possível simplesmente ignorar a quantidade de histórias sobre essas supostas civilizações desaparecidas, vindas de todos os pontos do planeta; algumas histórias, milhares de anos mais antigas do que a civilização celta da Bretanha.
Talvez seja mais prudente entender que a última palavra a respeito do tema “antigas civilizações” ainda está para ser dita ou escrita, e não são poucas as descobertas arqueológicas recentes que apontam nessa direção.
Matéria publicada originalmente na revista Sexto Sentido 49 (2006).